Avançar para o conteúdo principal

"Tirem-me os Deuses" de Ricardo Reis

"Tirem-me os Deuses"

Tirem-me os deuses
Em seu arbítrio
Superior e urdido às escondidas
O Amor, glória e riqueza.

Tirem, mas deixem-me,
Deixem-me apenas
A consciência lúcida e solene
Das coisas e dos seres.

Pouco me importa
Amor ou glória,
A riqueza é um metal, a glória é um eco
E o amor uma sombra.

Mas a concisa
Atenção dada
Às formas e às maneiras dos objectos
Tem abrigo seguro.

Seus fundamentos
São todo o mundo,
Seu amor é o plácido Universo,
Sua riqueza a vida.

A sua glória
É a suprema
Certeza da solene e clara posse
Das formas dos objectos.

O resto passa,
E teme a morte.
Só nada teme ou sofre a visão clara
E inútil do Universo.

Essa a si basta,
Nada deseja
Salvo o orgulho de ver sempre claro
Até deixar de ver.
Ricardo Reis

Que nunca se deixe a mente dominar por verdades meta-físicas, incrivelmente surreais. A verdade das coisas não reside nelas. Depois só nos resta, no auge da inexistência, a perene desilusão da sua irrealidade.
Interpreto Deuses não como instância religiosa, mas sim no sentido plural do termo.
Muitos de nós, durante a vida, endeusamos as pessoas e as suas verdades. Abdicamos dos nossos sentidos, das nossas verdades e, sobretudo, da nossa maneira singular de as perceber. Ousamos petrificar a nossa especificidade para que se inicie o embalsamento dos nossos heróis. A evolução faz pôr, dispor, disfarçar, encapotar, prensar, usar e abusar das liberdades, garantias e direitos das pessoas.
Os sistemas aproveitam-se disto.
Fantoches, a magote, desfilam diariamente nas ruas, na televisão, na rádio, na vida. Pergunto-me, singelamente, onde pára o espírito de ser pessoa, a "certeza da solene e clara posse"?
Respostas não as encontro. Provavelmente o medo, de não saber sê-lo, atormenta o meu modo-de-ser.

Luís Gonçalves Ferreira


Comentários

  1. A verdade é um conceito muito compexo. Porque a minha verdade pode não ser a tua verdade e vice versa. Porque "o facto de não ser reconheciada, não faz com que a verdade não seja verdadeira". Porque a verdade está na razaão de cada um, e por isso não existe verdade pura e dura, existem verdades...


    beijinho!

    ResponderEliminar
  2. pode ser um pensamento/ponto de vista interessante mas em pouco vai ao encontro daquilo que Reis inaugura (consulte os aspetos temáticos/"biografia" do autor)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Este blogue não é, nem prometeu ser, uma aula de literatura nem um ensaio. Obrigado pelo comentário

      Eliminar

Enviar um comentário

Vá comenta! Sem medo. Sem receio. Com pré-conceitos, sal e pimenta!

Mensagens populares deste blogue

Que gelado seriam?

Se fossem um gelado da Olá qual seriam? Porquê? Eu seria um Swirl de Chocolate: intenso, múltiplo, Yin e Yang das sensações. Eu sou assim: entre a diversidade e a unidade, entre a simplicidade e a complexidade. Divirtam-se! Sem mais, Luís Gonçalves Ferreira PS.: Como repararam, podem optar por outros gelados que não os do catálogo mostrado. Tem é que ser Olá e não valem os "porque sim" como resposta.

Por detrás da nova imagem deste canto

 We must crown our heroes A lógica iluminista, inteligente, simbólica e imperial do Terreiro do Paço sempre me encantou. Significa a profundidade que as peças de arte (de qualquer género) devem conter: um pedaço de História. Estar ali, no meio, virado para o Tejo é um transporte no tempo. Espelha um malogrado destino de um país que, outrora potência, reconstruiu, por infortúnio do tempo, um pedaço medieval, transformou-o em algo novo e apresentou-o ao Mundo. É como se, ali, num pedaço de chão, estivesse a réstia triste de um Império e o movimento hostil de um país que cresceu, ano após ano, século após século, de uma forma atabalhoada, confusa, mas sempre com uma imagem exterior límpida, renovada. Foi isso que guiou Dom João V, Dom José e o seu Marquês, a I República e a sua incursão na Guerra, Salazar e a sua exposição em 1940, a Expo 98', o Europeu de Futebol e que guia o TGV. São imagens que nos guiam como povo. Não interessa se se morre de fome para além de Lisboa. Não importa

Suor de que rosto?

Barrete de penas. Luvas até ao cotovelo. Sabor a ananás. Cachecol cor de pêssego. Lábios singelos de doçura profunda.  É triste estar-se triste. Peço desculpa por só vos trazer isto nestes últimos dias. Posso começar todos os parágrafos das minhas falas com coisas desconexas para parecer que estou louco. Estar louco traria justificação para o meu estado de espírito, mas seria uma farsa. Um travesti de sentimentos. Um ensaio. Um teatro. O final é o mesmo. O de sempre. Não consigo mentir por mais do que algumas frases. Falar novamente em ananás, luvas e lábios seria cenário artificial de um livro qualquer. Silêncio. Prefiro o silêncio a mim mesmo. Sou eu mesmo na companhia de mim mesmo. Provavelmente, estou farto de mim. É isso. Fecho as asas. Os olhos. E o coração. Seria muito mais fácil ser uma pedra, quieta, calada, e parar de escrever para sempre. Parar de escrever seria deixar de ser. E de sentir isto.  Não, Luís. Cala-te! Não escrevas mais! Desconfortas os outros com o que dizes. A