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Posto dos Correios

Vivo num país de mulheres com saias de fazenda, feitas nas costureiras. As varizes trepam as pernas, como se fossem raízes de árvores. São mulheres do campo, da terra, com filhos e netos, e maridos para cuidar. Sou de um país sem moda nas peles morenas, talhadas do sol e da teimosia da vida. Da aldeia onde o sino toca à morte e à esperança do raro nascimento. País de faladeiras gentes, com mãos de calos feitos e pés casposos, de andar descalço ou calçado, porque até a modernidade tem um preço. É gente da modinha e do rancho, e das típicas festas: há sempre um jantar ou um almoço a guarnecer, como depois da jorna nas grandes casas de dinheiro.

Este é o país que deu colo à evolução, ao 25 de abril, e à Europa. É o país que mais sofre com cortes, com despesas, com um Estado que lhes prometeu proteção e segurança, e um território de além mar, e falhou em quase tudo. Para eles Angola e Moçambique não eram Portugal, porque isso não interessava nada. Era treta estadista. Sabiam que o trabalho poderia significar uns sapatos fracos ou uma saia melhor, para altura das festas. É gente que ainda escolhe a roupa que vai levar para o caixão. E é gente que vê esta degradação pela qual sofremos todos, uns pelos créditos e outras pela incapacidade de poupar para os remédios. Aos seus anos de nascimento fazem injustiça o rápido crescimento do país à sua volta. Sabem bem que a reforma da terra não lhes dá que chegue para comer, ou para comprar uma saia de fazenda por ano, ou até para uns sapatos melhores. Sabem bem que pouco sobra para ajudar os netos e talvez os filhos.

O Portugal pobre, rural e analfabeto funcional ainda existe, senhores de Lisboa. A província ainda cá está, a viver do pequeno quintal que tem às portas de casa. Um dia percorri 80 anos em 30 quilómetros e foi das experiências mais marcantes da minha vida. Botas sujas do gado, um chapéu branco com palha em cima, e uma responsabilidade nos ombros: e era aqui, mesmo perto de mim. Ainda há gente com eiras e fogueiras dentro de casa. Ainda há miséria. Há miséria, mas não há elites: a cultura não sabe nada de Portugal e Portugal não percebe nada de cultura. A democracia, perante a fome, sabe que não vale nada. E a fome sabe que ganha à democracia. Tenho medo da fome e do retrocesso que ela pode significar. Permanece a consciência de que já estivemos mais longe disso.

Luís Gonçalves Ferreira 

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