Quando compro ou me oferecem um livro, tenho o hábito de lhe escrever o meu nome e o ano. Não existe um sítio específico onde faça questão de o gravar, mas tento interferir o menos possível na estética e na semiótica própria do livro; há, quase sempre, uma hesitação na gestão de espaço disponível (que nem sempre é pacífica). Sinto que não devo contaminar os agradecimentos e escrever na página de rosto parece uma violação do património antropológico que o livro guarda em si mesmo. Restam poucas opções, porque escrever-lhe entre as palavras está completamente fora de questão.
Na verdade, as relações de propriedade e, portanto, as relações de poder, implicam sempre cedências e gestão de espaços, de expetativas, mas sobretudo de silêncios. Os silêncios, nos livros, são os espaços brancos e é neles que cabem as (possíveis) marcações que, logo à partida e sem ler, faço questão de introduzir nos meus livros. As relações de poder nos livros, como em todos os contextos, implicam gestão de egos e um determinado cerimonial - o poder precisa de ser sentido. No caso, entre o escritor, o impressor, o livro enquanto material e a minha estante, há conjunto enorme de significados que estão muito para além do que o livro informa, diz, relata, denuncia ou transcreve. Há também o significado atribuído por quem nos oferece o livro ou que simplesmente o relata numa conversa regada com um (bom) copo de vinho. No Carne e Pedra do Sennett, que motiva este pequeno texto, fiquei-me no topo do sumário, logo a seguir à dedicatória: a uma tal Hilary. Teoricamente, os livros das bibliotecas são de todos e por isso não podem ser riscados, mas quantos rabiscos de outros não nos condicionaram raciocínios?
Não há grande regra nisso de escrevinhar coisas nossas em livros dos outros. Eu risco e anoto e corto partes do texto; faço setas daqui para ali; remeto para outras páginas e outros livros; mando aquelas ou outras palavras para outras propriedades, por entre outros espaços e outros tempos e outras noções de poder. Os livros mais incríveis são os mais riscados; os aborrecidos são os que não têm nada meu. Que seja a apropriação uma missão de reconhecimento, mas também uma sinalização do conhecimento: uma proporcionalidade direta entre aquisições, os seus usos e as noções de tempo, espaço e poder. Ad contrarium - ou na tentativa - as academias citam: as mesmas ramificações, mas nem sempre com a mesma profundidade. Só não gosto do meu segundo nome e os anos pares fadam-me má sorte.
Luís Gonçalves Ferreira, 7 de julho
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