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Branquo

Arquivo Distrital de Braga, Fundo da Misericórdia, Livro de Despeza 1646-1654, n.º 664, fólio não numerado. Esta página do livro das despesas do tesoureiro da Santa Casa da Misericórdia bracarense sintetiza a história enquanto ciência: é um ensaio silencioso sobre o trabalho do historiador perante o produtor da fonte, os seus contextos e a prova que produz, muitas vezes de forma inocente, no seu quotidiano. É uma página sobre o futuro encerrado na prova e na sua leitura perante o passado mais ou menos determinado; é um exercício de presente.
A palavra "branquo" não é exatamente escrita num fundo branco nem a tinta que o escreve é exatamente preta. A palavra não se refere, por isso, ao que de facto quer dizer: o tesoureiro queria assinalar a brancura propositada e evitar que fosse escrita por mais alguém na usura das suas funções? É mais ou menos o mesmo que fazemos com as chaves das nossas portas e os pontos ou hífens nos contratos de arrendamento. Desconhecemos quem e o que temia o tesoureiro. Não sabemos o porquê de a ter deixado em branco. Desconhecemos o que os seus olhos entendiam exatamente pela cor que escrevia nem que outros sentidos, para além da ausência de coisa escrita, podia significar o vocábulo. A história lida com o que não sabe e dá-lhe sentido; preenche os espaços como quando, em meninos, jogávamos à forca. A história é feita de palavras e enganada por elas. 
A página não numerada no livro 664 do Fundo da Misericórdia é muito mais do que a palavra "branquo" escrita no reto e no verso da folha. É o seu tesoureiro que fazia mal as contas do burel e é sobre o poder que lhe arrasta a pena no papel; é sobre os outros que a sua tinta perscreve; é sobre o indeterminado e a série de outros sentidos que o passado encarcerou no seu ventre. 
Perante esta metáfora, olhar o passado parece uma mistura de sorte e método; um além de sentidos num aquém de recursos. A história é sobre a falta de informação perante a existência de informação. É sobre as nuances e o cinzento que escorregou no relógio. Os arquivos e museus guardam as as provas em cofres e os historiadores e outros habilitados remendam os pedaços, criando um historiado num contexto. Tudo isto se parece mais com música, tecelagem ou escultura do que com as leis universais e comportamentos-tipo que a ciência procura tipificar. 
O tesoureiro João Francisco da Costa, que fazia mal as contas nos panos de burel, não fazia ideia dos segredos que guardava ao tratar de escrever coisas como esta. Recebia um pagamento em prestígio e enquadramento social. Será tudo isto sobre egos?

Luís Gonçalves Ferreira 

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