Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de abril, 2013

Uma cena muito básica

Ia escrever aqui um imenso texto sobre hipocrisia, falsidade e falta de rectidão. Sobre pessoas que dizem mal das outras, no escondido, e depois lhes bajulam a cara. E que a seguir teatralizam-se e se mascaram e acreditam nas próprias mentiras. Não fosse essa uma metáfora deles próprios e dos outros e de todas as suas relações; numa verdade irrenunciável que socializar é como ter um íman que atrai iguais a nós, ou que, mesmo diferentes, nalguma altura serviram as nossas carências. E desta língua que os critica, é a consciência certa de que um dia convivemos no mesmo ninho, na audição das coisas que sobre si acusavam, nunca directamente a quem de direito.  Continuaria a desfilar sobre todos esses itens básicos, já muito discutidos, amplamente criticados pelos que já fizeram o mesmo, tornando este estado uma espécie de memorial de um ressabiado. Mas não. Apenas e só, por que tudo isso me deprime profundamente. E o que me deprime eu não gosto de falar: não há forças que combatam aquilo
Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não. Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão Porque os outros se calam mas tu não. Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não. Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não. Sophia de Mello Breyner Andresen

Duas vezes nada

É assim amiga. Encontramo-nos quando calha nos bares de antigamente, deixando que sobre o tampo azul das mesas volte a pousar um baço cemitério de garrafas. Constatamos o pior, os seus aspectos. Corpos e livros que foram ficando por ler na voracidade da noite de Lisboa. De facto, crescemos em alcoolémia, acordamos tarde, em pânico, e perdemos os dias e os dentes com uma espécie de resignação. (Não temos, ao que parece, serventia.) Sorrimos um pouco, ao terceiro gin, como quem renasce para a morte, seus gestos de ternura ou de exuberância. Talvez tenhamos calculado mal o ângulo da queda, esta vitória sem nobreza dos venenos todos. Mas agora é tarde. Tudo fechou para nós, para sempre. O amor, o desejo, até o onanismo da destruição. Antes de procurares a esmola do último táxi, fica esta imagem parada, a desvanecer-se no frio mais frio da memória: não dois corpos sentados a trocarem medo, cigarros e palavras póstumas, mas

Fotogenia

Esbarro numa fotografia tua; é como um choque frontal: não sei onde me colocar, questiono-me das datas, do que estaria eu a fazer naquele exacto momento. Como se tu e eu, por entre o espaço, tivéssemos (ainda) uma linha que liga. Hoje está desatada.  Procuro e não encontro, nas nossas recordações. Ainda analiso os meus erros e não percebo a tua frieza. Queria que te aproximasses, mas não toleraria que da tua aproximação resultasse um arrependimento teu. (Não sei tirar-te medos) Esperaria assertividade, iniciativa... No fundo, queria amor, mesmo sabendo que ele não se pede. E por mais que me custe, mesmo que não o sinta, só posso e tenho que acreditar no que a tua boca me diz. Fosse este o meu primeiro amor e convencer-me-ia que iria arrepender-me de tudo isto, quando a clarividência voltasse aos meus olhos. Mas não: há uma convicção estrelar que me diz o contrário. E eu, militante convicto das coisas que não se vêem, continuo, incansado, ferido, convicto, à espera que alguém me resg

Do conjunto de cenas fodidas -

Our Deal Best Cost

Opiniões sobre aquilo que é fodido

O fodido da vida é não haver receitas para amar uma pessoa ou educar uma criança, por exemplo. Hoje achas certo e amanhã pode revelar-se tudo errado. Esta insuficiência prova a pequenez da ciência dos homens perante o próprio ser humano e a sua mente (deve ser essa a génese das esquizofrenias). É como uma criação que não supera um mestre...  Esta consciência só consegue minimizar a inquietação de viver. Aparece um problema a seguir, depois uma obsessão, a seguir um luto e uma morte. Voltou a foder-se tudo. Luís Gonçalves Ferreira 

Os oitenta do Avô Severino

O Avô Severino sempre significou muita coisa. Lembro-me de ir para escola na sua companhia e achá-lo severo de mais por acordar a casa com água fria na cara, ao querer espantar o sono dos mais novos, num cenário de quase-tropa. Lembro-me da impaciência e da teimosia dele, ao não permitir que ninguém fique em pé, na mesa agora farta. Recordo-lhe as cicatrizes que ele partilha, repetidas vezes, como quem diz "nunca digas nunca". Tomo-lhe o casamento de anos com a avó Júlia e a imensa inundação de sentimentos que isso significa. Lembro-lhes as histórias das férias, a companhia de anos de vida, como segundos e terceiros e especiais pais que também significam.  Dono de uma habilidade e inteligência incomuns para a sua escolaridade, ele lembra-nos precisamente que é  possível. Que é sempre possível.  O Avô é, na família, um pilar de rigidez, de uma certa intolerância aos desvios em relação aos seus valores e ao percurso da sua vida. Hoje, com vinte e três, vejo que essa é a sua