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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2018

Branquo

Arquivo Distrital de Braga, Fundo da Misericórdia, Livro de Despeza 1646-1654, n.º 664, fólio não numerado. Esta página do livro das despesas do tesoureiro da Santa Casa da Misericórdia bracarense sintetiza a história enquanto ciência: é um ensaio silencioso sobre o trabalho do historiador perante o produtor da fonte, os seus contextos e a prova que produz, muitas vezes de forma inocente, no seu quotidiano. É uma página sobre o futuro encerrado na prova e na sua leitura perante o passado mais ou menos determinado; é um exercício de presente. A palavra "branquo" não é exatamente escrita num fundo branco nem a tinta que o escreve é exatamente preta. A palavra não se refere, por isso, ao que de facto quer dizer: o tesoureiro queria assinalar a brancura propositada e evitar que fosse escrita por mais alguém na usura das suas funções? É mais ou menos o mesmo que fazemos com as chaves das nossas portas e os pontos ou hífens nos contratos de arrendamento. Desconhecemos quem e o q

Um querubim

A Mafalda foi batizada no dia 5 de outubro e eu não escrevi nada sobre isso. Não é normal em mim: a Mafalda tem uns olhos e um sorriso que significam grandes esperanças na minha vida. (Ainda) Não rabisquei nenhum linha, porque existe uma parte de mim que foge de algumas coisas que senti no dia em que, volvido de Barcelona, a segurei nos braços pela primeira vez. Foram pernas e coração com medo que lhe deram um colo entre os braços; era um sorriso nervoso e um nevoeiro de inverno; e uma masmorra indefesa que se sentia a cair de fronte a um vaso com pouca água no fundo. Não conseguia compreender a sucessão de coisas que me estavam a acontecer e o que a vida me estava a querer ensinar. Não me posso esquecer da palavra cancro e das coisas todas que pode signifcar, mesmo mantendo-se, no diagnóstico, a ser aquilo que não é e a não se saber muito mais sobre; "agora, é esperar", disse o homem da ciência; acreditei e acredito nele. O medo é uma cicatriz no meu corpo: a ela recolho e

Agonia da modernidade

É curioso que o Bolsonaro capitalize votos com base no combate à corrupção: os ditadores não conhecem limites jurídicos ao seu poder pessoal; o personalismo e paternalismo desmedidos são formas muito sérias e graves de corrupção moral e de usurpação da legitimidade política de todos pela capacidade de alguns; a usura da coisa pública à luz do tabelamento de dislates absurdos. Os ditadores são como cobras ardilosas que comem carne na Turquia enquanto os seus eleitores - a razão de ser do seu poder - morrem de fome. A eleição de ditadores ou populistas prova-nos que, em conjunto, falhámos - não cumprimos os nossos deveres e não provamos a todos e todas que o Estado de Direito Democrático cumpre as suas funções, especialmente a de proteger as expetativas de todas e todos prescritos no contrato social. Falha o homem médio e a modernidade baseada no progresso; falha a história e a cultura; falhámos todos, mesmo sendo europeus que nada têm que ver com o Brasil. Depois de ganhar a segunda vo

Museu Nacional do Rio do Janeiro

Há muitos conceitos no hipertexto entre a noção de museu nacional e o diálogo que o estado-nação estabelece de forma privilegiada entre o artefacto, a história e a memória. Há noções intrínsecas sobre o valor deste ou daquele património, que se agasalha e evidencia num tipo de narrativa que desfila nas galerias e nas coleções públicas. O mesmo acontece com os arquivos nacionais. Muitos deles encravam-se em gavetas pejadas de categorias naturais, cujo efeito primeiro é o de condicionar que se vislumbre para além delas. O caso do Museu Nacional do Rio de Janeiro, que ardeu na passada madrugada, fala-nos muito sobre a forma como o mundo tem assistido, nos últimos anos, a uma falência brutal do sistema político brasileiro; como se a noção de estado-nação, da democracia e dos poderes gritasse por uma revisão. Os brasileiros choram e fazem luto, porque o património histórico é uma parte da família nacional, cujos recursos festejamos na educação e na cultura, entre as salas de aula e uma peç

Curtos e armados

Museu da Imagem, Arquivo Aliança, AAL009990_1936 Fotografia Jorge Marçoa Em 2017, num Seminário da licenciatura, fiz um trabalho sobre os anjinhos na cidade de Braga na primeira metade do século XX. A origem dessa pequena investigação foi tão-somente o meu passado: como se buscasse, a partir da investigação histórica, conhecer melhor alguma parte de mim. A escolha do tema, da metodologia, a construção dos guiões de entrevista partiam da vontade de compreender melhor o processo que estava por trás das crianças que, hoje no Arquivo da Aliança, se vêem fotografadas em pequenos anjos e santos. Encontrei muitos dos objetos que ainda guardamos no nosso armazém salpicados numas e noutras luvinhas de renda; conheci muitas pessoas de quem tinha ouvido falar; compreendi melhor a forma como o negócio chegou à minha família e os trânsitos que representou. Era como se as histórias de menino se cruzassem com outras histórias de outros meninos; é, afinal de contas, o passado um caminho ate
A luz dos nossos olhos aumentou num quarto onde já ardiam velas. É um farol num mar da cor dos seus olhos. Quando as mãozinhas da Mafalda apertam com força o meu dedo indicador, sinto que o profeta sabia o que dizia sobre o caminho, a verdade e a vida. Não há muito a acrescentar a este poema: a simplicidade do silêncio do sorriso da pequena diz demasiadas coisas para que me possa perder com muitas palavras. Adornos, adereços e enfeites trocados por amor são o meu vício. Gosto muito de palavras e ainda gosto mais quando elas são pessoas. O amor dá e tira o sentido de todas as coisas. Há maior poder do que este? Luís Gonçalves Ferreira 

Sobre a Senhora do Amparo de Mirandela

Há muitos anos que venho vestir anjinhos para Mirandela e em todos eles aprendo coisas novas: sobre os outros e sobre mim mesmo; sobre o meu trabalho e o seu impacto na pequenez da vida das pessoas; sobre ter fé e sobre seguir descalço, mesmo com os termómetros a tocarem os 42º. Mirandela ensina-me muito e aquilo que move as pessoas - e que muitas vezes faz tropeçar as lágrimas pelos meus olhos abaixo - é de uma força que não tem adjetivos. Podem chamar-lhe de loucura, ópio do povo, ócio dos menos lúcidos, descolamento consentido da razão, mas sei que acredito naquilo que sinto. Deus parece, muitas vezes, uma ilusão, mas em Mirandela sente-se bem a sua presença. Aquilo que faz Mirandela sair à rua com 42 graus de temperatura não é ficção e vê-se bem. Criação do género humano, Deus é o povo que caminha descalço a abraçar velas pesadas. Deus é pelos terços pendentes de mãos em cera. Deus é nas cabeças sem cabelo, nas perucas a enganar os olhos e nos sofrimentos dos olhares vazios.  À

Ao Cristiano

Comecei este texto inúmeras vezes e risquei outras tantas; não fui capaz de escrever nada sobre o Cristiano e a sua morte, há mais de uma semana. Não sabia do início, mas sabia salteado o seu fim. O meu colega de carteira de três anos de secundário morreu e não há muito mais a dizer para além disto: a morte levou uma das pessoas mais incríveis que alguma vez tive a sorte de conhecer. Sorridente, amigo, confidente e uma estrela - com tudo o que as estrelas têm de maravilhoso, inclusive o final: numa luz fraquinha que se foi despedindo e cujas notícias uma fiel mensageira me ia trazendo. Fomos trocando umas mensagens e, sempre covarde, fui evitando as despedidas a sério. A morte mete-me medo e tendo a ignorá-la. Na Grécia, eu e a Ana falamos muito sobre ela e ele, enquanto todos dormíamos. No pôr-do-sol em Atenas, de cerveja na mão, desejei que o destino fosse trocado. O mesmo queria que tivesse acontecido ao ver o seu sorriso por cima da terra rodeada de círios.  O meu amigo Cristian

cisne

Não há mais que me angustie do que um olhar vazio: não está passivo a socorro, não pede ajuda e não grita por qualquer auxílio; não está vazio para ser ajudado. Um olhar vazio não tem direito a perguntas e não deixa que se perceba mais para além de ser o que são os olhares vazios: um caminho direto a uma dor irresolúvel. O meu super-poder podia ser o de resolver olhares vazios e os olhares teriam de volta tudo aquilo quanto perderam. Luís Gonçalves Ferreira