Museu da Imagem, Arquivo Aliança, AAL009990_1936
Fotografia Jorge Marçoa
Em 2017, num Seminário da licenciatura, fiz um trabalho sobre os anjinhos na cidade de Braga na primeira metade do século XX. A origem dessa pequena investigação foi tão-somente o meu passado: como se buscasse, a partir da investigação histórica, conhecer melhor alguma parte de mim. A escolha do tema, da metodologia, a construção dos guiões de entrevista partiam da vontade de compreender melhor o processo que estava por trás das crianças que, hoje no Arquivo da Aliança, se vêem fotografadas em pequenos anjos e santos. Encontrei muitos dos objetos que ainda guardamos no nosso armazém salpicados numas e noutras luvinhas de renda; conheci muitas pessoas de quem tinha ouvido falar; compreendi melhor a forma como o negócio chegou à minha família e os trânsitos que representou. Era como se as histórias de menino se cruzassem com outras histórias de outros meninos; é, afinal de contas, o passado um caminho atemporal e os anjos de roupa curta, armada, com cabelos encaracolados agrafaram-se na minha memória em conjunto com os outros que tinham deixado de ir para Vilarinho. Eram estes os riscos mais evidentes da linha temporal que, tantas vezes em partidas, me surpreende. Foi adiante que tive a primeira sensação de paixão pela História.
Em 2018, aquando da reunião com a Comissão da Virgem das Dores de Monção, propus levar para as ruas daquela vila Alto Minho uma reedição daqueles anjinhos que, guardados no arquivo, me mereceram alguma comoção. O desafio foi aceite e o resultado encontra-se nesta fotografia. Construí-los foi um processo interessantíssimo sobre as fronteiras entre a memória, o artefacto e a história; sobre o registo e o mito; sobre a importância da cultura material num tempo e num espaço. A fotografia não seria possível se a minha mãe, a minha tia e as funcionárias filhas de outras funcionárias não guardassem um conjunto de informações valiosas desde o talhe até à construção das cadeias de pérolas que compõem as voltas armadas das saias. Estes anjos guardam um tempo que não existe mais, porque não já se perdem tardes a fazer favos de pérolas em cetim que não se pode lavar nem existe uma verdadeira construção de indumentária. A sociedade da velocidade mitigou a ligação aos materiais e ao trabalho cuidado, vagaroso; vivemos tempos de figurados de última hora, pedidos a regaço e em favor. Somos outro tempo, por certo de rosto mais saudáveis e futuros com mais hipóteses.
Gostava de agradecer à professora Fátima, por ter compreendido que procurava algo sobre mim nas perguntas que arquitetava para os outros; à minha mãe, por acreditar e por ter dito, há anos, que gostava de fazer "uns anjinhos como antigamente" para as Cruzes de Barcelos; à Gina, à D. Lurdes, à Joana pelo trabalho manual, muitas vezes feito em fuga de outros compromissos; à minha tia, por ter visto beleza e ter acrescentado memória; às Mordomas de Monção por darem valor ao trabalho que tanto gosto de fazer e assim criarem espaço para acontecer; ao Museu da Imagem e à Câmara de Braga, por me facilitarem o acesso às fotografias e por manterem vivas crianças de cetim com passado guardado por luvas de algodão; à minha avó, por ser a ligação entre todas as coisas ao transformar um negócio de lambreta, com oito fatos a bordo, num sítio fabuloso com milhares de metros de panos e vidas.
Luís Gonçalves Ferreira
Comentários
Enviar um comentário
Vá comenta! Sem medo. Sem receio. Com pré-conceitos, sal e pimenta!