Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2020

Plataforma, fé e quarenta

O filme Plataforma, em exibição na Netflix, é particularmente pertinente nesta fase em que as casas de cada um, e as condições da sua quarentena, espelham de forma paradigmática as desigualdades e assimetrias sociais: ter ou não ter casa; poder ou não estar em casa; ter ou não ter emprego estável; ter ou não ter internet; ter ou não ter televisão; ter ou não ter jardim - é o que nos distingue e paradoxalmente unifica. Isto parece ser sempre sobre acumulação e desperdício. Parecemos ratinhos a girar na roda da privatização e da civilidade - etiqueta respiratória em casas abertas ao alheio. Sempre em poder pela distinção. Violento em muitos momentos, porque também o nosso quotidiano e as nossas casas escondem violência, o filme é uma metáfora para a forma pornográfica e irresponsável como os países ricos usam e abusam dos recursos do planeta terra, levando-o à exaustão e à circulação dos “restos” para os países pobres: dos serviços à indústria. No filme, a partir do 50.° andar não há

A nova guerra

A competição entre os países tem duas feições: 1) quem toma as medidas mais musculosas e se torna a democracia capaz de ser menos democrática em estados de extrema necessidade; 2) quem politicamente lidera o processo e encabeça a civilização ocidental. No entretanto, tudo fica mais confuso quando a metade anglo-saxónica da coisa (EUA e Reino Unido) parece ter emparvecido definitivamente. No entretanto, a mesma fantasia pelo quantitativo nos seus efeitos anti-depressivo e ansiolítico. Gente, as curvas são pessoas e não os preços do barril de petróleo na Arábia Saudita! Luís Gonçalves Ferreira Escrito em 22 de março de 2020

Uma infeliz coincidência?

Neste momento em que se combate e não se limpam as armas, gostava de trazer uma reflexão com dois pontos: a responsabilidade de todos e todas como agentes ativos da coisa pública e do interesse societário, o que implica que não dependamos do Estado para tomar decisões fundamentais e estruturais das nossas vidas - que façamos mais e que reivindiquemos melhores políticas; e que saibamos compreender que a COVID-19 discute política e economicamente o nosso modelo civilizacional: o valor da saúde, o desajuste do desenvolvimento baseado na acumulação e desperdício de recursos, o agigantamento das cidades e a deficiência do seu abastecimento, a terciarização do tecido económico, a importância da liberdade de imprensa e a dimensão crónica do analfabetismo funcional e digital, o livre desenvolvimento da nossa personalidade, a liberdade de circulação de pessoas e bens, as garantias da segurança que constam do nosso contrato social com a República e quais são as fronteiras que pisados ao abdicar
A Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva tem uma pequena exposição com cartazes e livros sobre o holocausto. A ideia do eugenismo, racismo, xenofobia e o binómio "nós versus eles" matou milhões de vidas ao longo da história. Não falo apenas de judeus, mas também falo deles. Judeus, ciganos, homossexuais, padres, frades, freiras, reis, republicanos, socialistas, bruxas ou mouros totalizam muitos dos nomes que compram a nossa simpatia para com quer o poder de nos governar. É por isto que falámos mal dos nossos colegas de trabalho e os tentámos tramar em muitas curvas e em algumas retas: queremos o que é deles, pois o deles parece melhor que o nosso. O compromisso com a pessoa humana tornou a Europa do pós 2.ª Guerra Mundial um sítio de liberdade e crescimento económico que proporcionou o aumento da qualidade de vida de todos e todas. Este quadro de crescimento intelectual fez de nós - Europa - um continente querido, desejado, mas também - e eternamente - colonizador, pelo que que

Sobre Two Popes

Mais do que todo o espetáculo fotográfico, o seu colorido ou as polémicas acerca da administração do catolicismo, o filme "Two Popes" parece-me um ensaio filosófico sobre a diversidade de tudo aquilo a que, de forma simplista, chamámos de igreja. A narrativa fala sobre as complexidades da relação do humano com Deus, os seus defeitos congénitos pela mediação natural da razão e do entendimento, a construção filosófica e dogmática da crença no metafísico; é uma conversa entre a Europa e as periferias e a pressão que o "outro" exerce, mundo moderno, sobre o universalismo eurocêntrico, branco e autoritário. A missão da Igreja de hoje, aberta ao mundo pela mensagem ecuménica de Jesus, é a de aceitar as vozes que, numa primeira reação, parecem reagir-lhe com repulsa. "Two popes" é mais que uma conversa de gerações entre o velho e o novo contado em rugas. É sobre outro tipo de tempo, de velocidades diferentes e feito de contextos. Os contextos e as histórias das

Luisinha

O nosso corpo foi desenhado para receber e dar amor. O ombro serve, desde cedo, para que nele pousem as cabeças dos bebés a pedir embalo; as mãos secam as lágrimas e escrevem poemas; os olhos revelam as verdades que, muitas vezes, os lábios escondem. O corpo guarda memórias e estórias e também diz dos sítios onde fomos e das pessoas que por ele carregamos; algumas pomos no colo e outras esfregamos na nunca. As datas de aniversário são sínteses de tudo isto e tenho pena de ter sempre este fado que observa mais do que vive; como se estar fosse memorizar, gravar, registar e pensar; às vezes, parece que não estou inteiro e que há uma parte de mim que gravita fora do tempo e se perde a sentir. Os dias de ontem e de hoje simbolizaram toda a plenitude e todos os corpos que se fundem numa única e substantiva noção de amor e família. Festejei o primeiro aniversário e batizado da Maria Luísa, chorei a sorte e a responsabilidade de ser o seu padrinho e lancei as mãos aos trinta. Há muito futur

(des)Ventura

Retirem a vossa cabecinha da dicotomia da esquerda e direita e pensem um pouco adiante: o André Ventura significa toda a intolerância, ignorância e nepotismo que o nosso sistema democrático deveria repudiar. Ventura é igual ao Passos Coelho e ao Costa e aos outros tipos das jotas - quer poleiro; mesmo que para ter o poleiro tenha que vender a alma ao diabo e ofender os princípios do estado de direito; mesmo que tenha que mudar de ideias; mesmo que tenha de receber dinheiro de instituições fascistas europeias. A instrumentalização de bodes expiatórios ou criação de falsas hierarquias de valores é comum aos sujeitos que pretendem comercializar o voto à luz de estratégias de poder pessoal; ensina-nos a história. A política não deve ser este exercício de demagogia e de estímulo ao ódio; a política deve discutir, problematizar, questionar e propor para nos encaminhar, em sociedade, para um sítio mais justo, equitativo e livre - justiça, liberdade e equidade de alguns não se constrói à cust
Imagens: Fredericco Zucari, Margarida de Sabóia, duquesa de Mântua, c. 1605, em linha https://pt.wikipedia.org/…/Ficheiro:Margherita_of_Savoy_duc… ; e Balenciaga, Double Sleeve Shirt in white and black checked stretch cotton flannel, coleção 2020, em linha https://www.balenciaga.com/pt/shirts_cod38866742ju.html… . Colagem: Luís Gonçalves Ferreira O que nos afasta e aproxima de seiscentos? As mangas perdidas. Ontem como hoje, mas com géneros, raças e materialidades diferentes. Ontem, mulheres estáticas em pedestais da razão; hoje, homens negros com brincos; sobre as periferias, a competição, o poder do luxo, a cultura material, a moda e o "estado do presente" que sempre significa. E, claro, imagem sobre a classificação social/cultural dos géneros e a fluidez do binário sexual. A indumentária situa o ser humano. Luís Gonçalves Ferreira Escrito em 21 de novembro de 2019

Paula Rego, Bride, 1993.

A Paula Rego disse que os cães dão a barriga para cima quando se rendem e o quadro “Bride” é sobre isso. Também disse que deixou a fase das colagens e passou ao desenho quando sentiu que colava coisas apenas pelo efeito; desenhar libertava-a mais. Acho que a ideia de fazer as coisas apenas pelo efeito sintetiza muito do aborrecimento que, em algumas fazes da vida, podemos sentir ao fazer as coisas que já amámos muito e que no presente nos aborrecem. A ideia da Paula Rego é muito forte e também se aplica ao amor; há muitos casais que estão juntos apenas pela sensação do efeito e vivem a vida de barriga para cima, rendidos ao aborrecimento, ao tédio e à casa. Também não sei se o amor não é exatamente aprender a estar feliz entediado e aborrecido e em casa. Ter uma casa é a parte mais substantiva da liberdade de viajar; ter casa é exatamente ter lugar para virar a barriga para cima e reclamar por carinhos. Os cães ensinam-nos que apenas devemos confiar depois de cheirar a bondade da pess

As saias com cheiro a teias-de-aranha.

Há umas coisas muito importantes que poderia dizer sobre o uso das saias no seu significado antropológico, sociológico e histórico, sejam usadas por mulheres ou por homens. Também podia relembrar que as roupas não têm um género definido; ser homem ou mulher não é ontológico ao objeto que estabelece a relação de poderes entre a coisa e a identidade da pessoa que ajuda a construir, definir ou limitar; a relação entre o objeto e o seu significado resulta da atribuição de sentido social e cultural num campo historicamente limitado, apreendido por todos e todas perante os sistemas de signos disponíveis para apropriação. Também é importante dizer que os clérigos, os desembargadores e até os universitários ainda hoje envergam vestes talares como forma de prestígio intelectual e enquanto símbolo de um tipo de masculinidade alicerçada em princípios de ordem moral ou intelectual. O que parece ainda mais curioso sobre estes comentários acerca da saia do assessor do Livre no parlamento, é que

Bafo no corpo

No verão, escrevi que as casa da rua do Gualdim deitavam um bafo frio muito agradável; era uma transpiração seca de uma caverna - parecia que um monstro escondido guardava conforto para quem passava. Hoje é quase inverno, a hora muda no fim-de-semana e descobri que as pessoas também fazem vento; as pessoas têm sombra, respiram, espirram, suam e fazem vento quando se aproximam. O vento foi frio e desconfortável, porque é quase-inverno e chove na parte de fora. No verão passado não tinha sentido este vento, porque o vento que a pessoa faz é muito leve e mal se sente; o calor é mais poderoso que a pequenez do vento que a pessoa faz. As casas fazem um frio mais poderoso do que o frio que fazem as pessoas, porque o calor das casas é o vento que as pessoas têm - uma espécie de duelo de quenturas e um diálogo entre os poderes móveis e os estáticos. O vento, as pessoas e as casas são estações ou, pelo menos, aliviam-nos as sensações que delas ficam nos nossos corpos; depois há tufões que leva

Já fui Donald Trump

Não me recordo de, na minha infância, ter ouvido falar de forma tão intensa no planeta e nas questões climatéricas. As questões mundiais giravam em redor da pobreza, dos vírus, doenças contagiosas e das guerras totais que terminariam com o nosso crescimento económico. A minha educação familiar, a minha escola, os meus círculos mais próximos ensinaram-me muito pouco sobre a importância de respeitar o meio ambiente. Cresci em liberdade e brinquei muitas vezes na rua; ia de automóvel para a escola e não gostava de andar de transportes públicos. Alguns dos meus privilégios de infância passaram por saber o que são os afectos e conseguir crescer com responsabilidades de criança. Hoje, aos vinte e nove, a minha consciência é outra. Durante anos, mesmo vendo na televisão macacos a conseguir separar o lixo, era um urso e recusava-me a fazê-lo; tinha um discurso conservador e dizia que o planeta aquecia por motivos "naturais" e que o processo fazia parte do ciclo da terra. Não de

A respeito de uma mulher morta, em Braga, pelo marido

Ontem escrevia que o mundo é uma gruta e que isso me emocionava. Tive a mesma sensação no Gesù, em Roma, quando pensei que o ser humano era capaz de executar peças muito belas, que nos encostam a barriga aos rins; perguntei-me, na altura, como era possível que esse mesmo ser humano, que desenha e executa obras magistrais, partilhasse o palco com outros seres da mesma espécie, mas capazes das maiores atrocidades... Agredir, violentar ou matar a pessoa que vive na mesma casa que nós, e que connosco partilha um projeto de vida, é das coisas mais grotescas e inumanas; é como ferrar os olhos que choram pelas nossas dores. O ser humano é uma gruta onde acontecem das coisas mais estranhas. É isto e é uma tristeza. Luís Gonçalves Ferreira Publicado no Facebook em 19 de setembro de 2019
O último Visita Guiada - e primeiro episódio da nova temporada - fala das relações entre Portugal e o Japão. Depois de uma rápida introdução do cristianismo no século XVI e o seu ostracismo e proibição no século XVII, sobreviveram, dentro do Japão, práticas cristãs clandestinas. Entre elas, destaca-se uma estupenda cultura material. No programa mostraram uma representação de uma Nossa Senhora do Leite com cara de samurai rodeada de dois santos jesuítas com olhos em bico. A piedade popular é das coisas mais surpreendentes da história por ter este lado humano baseado na apropriação e sobrevivência. Algo nisto relembra os moçárabes ou os cristãos-novos na Península Ibérica! O mundo, apesar de redondo, é uma gruta; e isso é emocionante. Luís Gonçalves Ferreira Publicado no Facebook em 18 de setembro de 2019
Sobre o filme Histórias & Segredos acerca da vida e obra da pintora portuguesa Paula Rego: Enquanto as ampulhetas pingando sopa enchem parangonas, gostava de vos dizer que este documentário é muito belo e profundo; diz muito sobre a arte e Portugal e sobre o amor. Tem muitas pausas e o silêncio é das coisas mais bonitas de se documentar. É isto. Façam greves, mas com amor. Luís Gonçalves Ferreira Publicado no Facebook em 12 de agosto de 2019