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Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2019

Questões da polis

A classe política - seja isso o que for - queixa-se da abstenção, mas devia lamentar a campanha vergonhosa que proporcionou aos portugueses. Nunca se discutiu sobre a Europa; falou-se sobre os umbigos egocêntricos dos caciques do costume. Uma Direita à deriva e uma Esquerda presa nas suas demagogias e divisões. Para que os portugueses percebam a União Europeia, é necessário que quem dela faz profissão demonstre que domina os dossiês das instituições que efetivamente decidem legislando sobre as nossas vidas. Existe de algo de muito errado nisto tudo e uma participação de 30% é um muito que não é democracia.  Os políticos não são geração espontânea e esta mediocridade equivale à forma mediana como, individualmente e em comunidade, vemos a cidadania. Uma das formas de tirania é a ausência de limites; nos grandes e nos pequenos púlpitos. Não falar é não querer saber e é deixar, vazio, o contrato que nos governa. 26 de maio de 2019 Luís Gonçalves Ferreira

Grutas e as cidades

Nas ruas do Porto, em tardes de calor, sente-se o bafo frio das casas velhas. É como se, pelos vidros partidos das portas com buracos, um gigante desse do seu respirar poderoso para aliviar o peso da urbe. Não é coisa que se note na primeira ou segunda jornada; é preciso cruzar algumas casas velhas para sentir a sua respiração. Na Rua do Galdim Pais, em Braga, resta pouco do cheiro a casa antiga. As casas dos centros históricos têm um aroma característico, algures entre o cheiro da madeira antiga e o suor de naftalina. Ao passar pelas ruas do Porto ou de Braga, devoradas pelo turismo, apercebemo-nos que o cheiro e o bafo das cidades são realidades históricas. A renovação dos prédios velhos adia o suor e o bafo das casas... Talvez seja este o sentido das crises e a forma como os sítios guardam a memória das pessoas. É também este o significado da renovação e da passagem das estruturas; o sentido dos desafios dos séculos e das explicações sensitivas através das palavras.  Entre tantos

janelota da cabine

A síntese do trabalho intelectual está agrafado às paredes das cabines da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva. A noção da infinitude do conhecimento perante a mortalidade do corpo e a solitude dos diálogos de duas dimensões - tantas vezes com pessoas mortas e quase sempre com gente cujo máximo que se sabe é o nome e os apelidos. Escrever teses tem muito de autoconhecimento do tudo que se aprende a conhecer no eco mudo das coisas que lemos e ouvimos. Bate e rebate e não sai dos líquidos que temos dentro de nós. Um metro quadrado de solidão nos tantos centímetros cúbicos de conhecimento por descobrir. Conhecer parece um aquário que atribui significado ao que descobre pelo tanto que desconhece. Aprendemos a chamar nomes aquilo que somos para sermos compreendidos e, mais do que tudo, desculpados. Imperfeições que vejo nos tantos olhares que lanço ao cemitério dos livros emoldurados na janelota da cabine. Luís Gonçalves Ferreira

Encontros e despedidas

Na cidade Ercília, as casas têm fios de várias cores a ligar as suas arestas. Os refugiados, acantonados nas suas fronteiras, limitam-se a observar aquele emaranhado de linhas. Hoje, se olharmos parados esta assembleia, imaginamos mil fios ligados de uns de nós para com os outros e de outros milhares de fios conectados para além deste sítio onde nos encontramos. A existência do presente é também estarmos em muitos sítios ao mesmo tempo. O fio fundamental que nos liga a todos, sem necessariamente ligar cada um de nós, é a Anabela e o Pedro, tal e qual a cidade invisível de Ítalo Calvino. Os nossos fios são de cores diferentes e é bonito ver este arco-íris. Mas não é sobre cidades imaginadas nem acerca de cabos cor de jasmim que vos quer falar este grupo de pessoas, unidos para presentear os seus amigos. Entre as cidades do mundo existem conexões inventadas a interliga-las. São rotas de ida e de vinda; espaços cheios de encontros e de despedidas. As plataformas da vida são momentos

O disco rígido da Manuela Moura Guedes parou

Hoje, na SIC, a Manuela Moura Guedes, no seu habitual espaço de procuração de alguma coisa, falou sobre a rede ex aequo e o Projeto Educação, que leva às escolas portuguesas a discussão sobre as questões do género e da identidade. Fui voluntário da rede ex aequo e sempre me senti fascinado por aquele projeto, pese embora o seu centralismo em redor da capital e de um ou outro centro urbano; quase-sempre no litoral, porque isto um dia afunda à esquerda. A intervenção que a rede ex aequo tem desenvolvido, em Portugal, desde a sua fundação é muito meritória e não acontece sem enquadramento legal; é uma associação com financiamento público, transparente e cujo objetivo passa pelo apoio de jovens lgbti. Tem também grupos locais que, em muitas histórias dos hoje adultos felizes, foram clareiras de luz nos pântanos da opressão. Coisas objetivas e quantificáveis. Posto isto, e tentando isolar os meus amores (e as minhas convicções), aquilo que mais me incomodou no discurso da Manuela Moura

o vos

Terá os seus 50 anos e serve cafés numa freguesia onde, desde pequeno, reencontro anjos roxos e carmesim. É ali que começa a Função dos Passos onde os guiões pesados dos martírios seguem o rugir da corneta penitente. A senhora está quase sempre de mau-humor nas duas ou três vezes que a vejo num ano. Não diz boa tarde nem obrigado e também não sorri. Ano passado, por esta altura, continuava mal-humorada, mas um bicho tinha-lhe roubado o cabelo e coberto a careca com um gorro hostil em lã. Felizmente - pensei eu - não lhe tinha levado a má disposição e a vontade de trabalhar. Passou tanto tempo quanto o habitual que nos costuma separar, e a sua testa continua carregada; continua sem sorrir e dizer boa tarde, mas agora tem um cabelo encaracolado bonito e divertido. Devo voltar a encontrá-la mais uma ou outra vez neste ano. Certamente darei bom dia outra e outra vez e outra por outra vez terei silêncio e a cabeça a abanar como resposta. O Caetano canta um poema que diz que debaixo dos car

sobre Karl Lagerfeld

A moda é um estado de presente e uma patologia crítica do mundo que a rodeia. A moda critica, constrói e remonta corpos, sociedades e poderes que, pelos signos, ganham, transferem e ajustam significados entre si. Entendida como sistema codificado dos inúmeros significados sociais do corpo humano perante os desafios do seu tempo histórico, a moda é, através do seu criador, uma interpretação crítica do espaço. São tesouras, linhas, bordados e cortes que localizam o feminino e o masculino, estabelecem as pontes entre os géneros, as geografias, as periferias e as hegemonias e lançam a performance do self ao complexo jogo tributado das aparências. Desafios, sedução e desejo que ganha pertinência perante um espaço tácito de competição; as ruas das cidades ou os holofotes do Instagram são textos de línguas diferentes perante os mesmos desejos de protagonismo e cotação face ao outro.  Um dos grandes desafios das marcas de moda é relançar-se após a morte ou a perda do nome que a originou; o

Sobre a polémica do diz-que-diz acerca do Conan

O Conan diz que partiu o telemóvel a tentar ligar para o céu e a Luciana Abreu fez uma música com a Gretchen em que o playback estava muito mal feito. Entretanto, sonhei com o Carlos Paião a cantar quando cai a noite na cidade da Anabela. O Paião tinha umas roupas muito coloridas em poliéster ou nylon; não consegui distinguir. Acordei a gargalhar-me; foi divertido. A Turquia, a China e a Rússia dizem que "sim, senhor" o Maduro é um gajo fixe e os países ditos "civilizados" dizem "não, senhor" é um ditador e existe uma assembleia legítima que deve ser respeitada. O voto do povo, cá como lá, serve para o que tem de servir; não importa quantos morrem à fome ou dormem ao frio. Sobra sempre um naco de carne sul americana para comer em Istambul. O engraçado é que a China se chama de República Democrática e o Bolívar, que dizem ter sido um gajo fixe, deve andar às voltas no caixão nas pausas das suecas. Ainda dizem mal do brioche da Maria Antonieta. Hoje diríamo

A minha pátria é o amor

O marido da Júlia Pinheiro disse-lhe que ela era a sua pátria. Num tom bonito e sincero com a voz bem colocada de um radialista. Ouvi pela primeira vez a palavra mátria pela pena do professor Ferreri e muito do meu feminismo fez sentido, porque as mães ensinam-nos muitas coisas das quais não podemos ter medo; o amor também tem géneros, sentidos e construções; o amor também é berço e não devemos deixar que as cozinhas e os quartos deixem de ter cheiro a amaciador. Mátria, pátria e casa são palavras que rimam bem. Berço também faz o seu sentido, porque é uma espécie de colo posto de urgência quando o de carne e osso está ocupado ou cansado ou a tratar de pôr amaciador na roupa. Num tempo de ressurgimento das pátrias e das casas grandes defendidas com exércitos e bandeiras, acho que faz sentido relembrar que a pátria é amor e não tem muito que ver com ódio. O amor deve ser o outro ao disser-lhe para se deitar no berço enquanto o colo está cansado, fazendo-o como nosso e partilhando um

Entrevista da Manuela Eanes a Fátima Campos Ferreira

Fátima Campos Ferreira: É muito importante o silêncio do jardim? Manuela Eanes: É. O silêncio do jardim ou o silêncio... eu preciso de silêncio na minha vida de vez em quando. Acho que toda a gente devia, de vez em quando, ter esse momento de silêncio que faz bem. Enche a alma... e dá vontade de começar de novo de outra maneira. Ouvir pessoas inteligentes é tão ou mais importante do que ler livros. Mesmo perante a hierarquia de tudo, ler não é mais importante do ouvir; ouvir dá espaço para pensar com calma e a atribuir algum silêncio que ecoa de um barulho; como uma pinga que cai num jarro de água. Representamos as ondas sonoras como eternizamos ondas de água nos mares oceanos. Isto é muito importante como é importante dizer que dámos pouco espaço ao silêncio e pouca importância a ouvir o outro, porque o silêncio de ouvir barulho e pensar sobre ele é do mais belo que existe. Os silêncios de Manuela Eanes são constantes e dão espaço a que lhe queiramos saber do olhar e do gesto e da bo

Sobre a Lição de Anatomia do Dr. Willem Van Der Meer em Delf

Pieter Van de Miereveld, A Lição de Anatomia do Dr. Willem van der Meer em Delft, 1617. Hospital Municipal de Delft, Países Baixos. Os panos tapam o sexo e os olhos - a alma e o corpo. Sobre os preconceitos do homem perante Deus; como se interpela o corpo sem questionar o divino? O corpo galantemente vestido dos estudiosos perante a nudez do cadáver; lenços lindos de pano branco purificam os labirintos do corpo. “Os olhos são espelho da alma” e os caracteres sexuais a prova do pecado, do preconceito do corpo, do jogo do esconderijo do prazer. As roupas disfarçam, escondem, modificam e identificam o corpo normatizado; são o castigo de Deus pelo desafio do conhecimento. Vestiram-se quando perceberam o pecado; Dürer exercitou as suas noções anatómicas modernas no nu permitido - homem e mulher, com a serpente a espreitar, ainda bons e sem consciência de pecado. Ordem e caos num binómio onde o bem e o mal ou deus e os homens se (re)entendiam aos poucos, nas apalpadelas do humanismo e,

sem título ou com o nome do novo ano

Há um ano sobrava-me medo e muita ignorância sobre a importância das pessoas, do seu amor e dos efeitos positivos de sermos constituídos dos outros. Ser através deles, aprender com eles e entender que, mesmo aparentemente perdendo... são algumas das inúmeras coisas que ganhamos; muitas vezes em silêncio e outras tantas sem perceber muito bem como nos chegam. Ao 2019 do futuro, ao primeiro ano novo da Mafalda, ao sorriso da Pipa, à pequenez da Maria Luísa e à minha família, que é a maior parte de todas as vidas; a Atenas e a Roma; a Barcelona e Sevilha; às bolsas perdidas pelas malas descobertas; aos prémios com agridoce no meio; ao saturno e ao júpiter, que nunca me deixa; ao tempo e ao coração; ao amor exclamado sem interrogações nem reticências; e, sem fim, aos silêncios. Escrito em 1 de janeiro de 2019. Luís Gonçalves Ferreira

Anéis de saturno

Agora que a poeira está abaixo do nível dos olhos e que o saturno abranda o ritmo, gostava de agradecer a deus por me deixar ver tantas coisas em todos os sítios que vou. Vejo, à minha volta, muito amor e muita fé; muita graça e compreensão. Os 28 anos ensinaram-me muito sobre desafios e sobre ganhos e sobre projetos que, mesmo aparentemente falhados, são passagens para algo melhor. São rodas da fortuna que espalham tudo o que plantamos. A Mafalda e a Maria Luísa são o início e o final de tudo isto, com tudo o que acrescentam e cujas palavras são tímidas no significado.  A minha compreensão e lucidez perceberam muitas coisas mesmo quando a luz estava fraca. E nesses momentos, chegou um sopro que fez a ignição vital e eu aprendi a ver o vento que Jesus disse a Nicodemos existir. O saturno tem dezanove anéis e nove luas que o protegem e lhe dão sentido. Os meus números são outros e, felizmente, tomo-lhes as contas pelos dedos das mãos. Muito perto e ao alcance das sortes de um brinde,

Ruidenore

Num mundo dividido por nacionalismos, muros de preconceito e palavras de ódio em relação ao outro, a fronteira luso-espanhola banhada pelo Rio de Onor é um poema vivo acerca das ironias do político. É a prova viva - transparente como a água - que os países não existem; que as fronteiras são de papel e caneta; que o humano é mais do que as barreiras e os canivetes que rasgam tratados e convenções. Além da placa "Espanha", que a vegetação consome com boca de fome e faz desaparecer, entre Rio de Onor e Rihonor de Castilla não existe absolutamente nada de nosso ou de vosso.  As árvores comem a política e os humanos cruzam-se com ela; destroem-se a partir dela. Há bandeiras da federação, do estado-nação, da província; há, obviamente, os cheiros e os cartazes com estrelas e esferas armilares e coroas da monarquia. Mas também há os sobrados entre animais e humanos, as casas do forno comunitário, o rio que, sozinho, rasga tudo mais unindo que separando; há respeito pela terra e su

Traje e moda - passado e presente

"O traje ('costume') tem que ser: estável o suficiente para permitir que artistas desenhem determinada roupa como típica de determinadas regiões; e, reconhecido como identidade fidedigna por um grupo. Esta estabilidade é afetada por mudanças políticas, por apropriações de estilos pelas elites ou os grupos elencados nas leis sumptuárias, pelas transformações nos tipos de indumentária ao longo do tempo ou pela importação de tecidos e cortes de roupas por estrangeiros. (...) Os críticos medievais e modernos da moda criticavam a novidade, as alterações rápidas nas formas da indumentária e o excessivo exibicionismo visual, porque acreditavam que estas práticas eram as responsáveis pela dissolução abrupta do corpo político num mundo marcado pela construção da "nação". A moda, naquela perspetiva, equivalia ao pretensioso, contrafeito e perverso. Os críticos da moda voltavam-se contra a força que os dividia; viram na lascívia dos veludos, sedas e brocados a força que ro

Laje em betão

A fixação de Felicidade Noivas em Braga é, em boa medida, um regresso. Quando, em 1978, os baús dos mantos, vestidos, coroas, coisas de cabeça, acessórios de mão e o conhecimento de Amarina Castilho se levantaram da Rua D. Gonçalo Pereira, n.º 64, para o Lugar de Cruto, em Cervães, houve um espaço na cidade que ficou por preencher. Muito desse entre-meio foi colmatado com a ajuda da Vitorinha, antiga funcionária da "menina" Amarina. A Vitória, entre o tempo, transformou-se numa das figuras da Braga pitoresca que, no meio dos turistas e das suas selfies, teima em querer desaparecer. Na quaresma e no São João, a sua porta, na Rua D. Gualdim Pais, era a nossa casa em Braga e, ironicamente, é a sua incapacidade que provoca tudo isto. Em 2017, quando, num Seminário sobre Contemporânea, fiz dos anjinhos o tema de um pequeno estudo, lancei olhar crítico à procura da fábula, do mito e da realidade. Tentei despir-me de mim e envolver num manto ascético científico; obviamente ma

Touros do Vietname

Espanta-me que o país que se preocupa tão pouco com arte e cultura se preocupe tanto com as touradas. A questão das touradas nada tem que ver com um processo artístico; é uma barbárie baseada no desejo e prazer de ver sangue - e o que está errado é precisamente o patrocínio, muitas vezes público, do que é horroroso e violento. Também acho interessante perceber, conforme observou o Sennett, que nos espantemos tão pouco com a violência de humanos amputados e esfomeados nos televisores e nos choquemos tanto por animais maltratados. O Sennett contava, no livro Carne e Pedra, que, numa sala de cinema nos subúrbios de Nova Iorque, depois de terem visto um filme sobre a Guerra do Vietname, todos notavam a mão amputada do seu amigo e ninguém parecia incomodado com as atrocidades que havia visto. As touradas são mais tradição do que uma arte e parece-me mais sensato admitirmos que gostamos de ver homens defrontarem touros e que somos insensíveis ao sofrimento do animal, do que alterarmos termo