Hoje, na SIC, a Manuela Moura Guedes, no seu habitual espaço de procuração de alguma coisa, falou sobre a rede ex aequo e o Projeto Educação, que leva às escolas portuguesas a discussão sobre as questões do género e da identidade. Fui voluntário da rede ex aequo e sempre me senti fascinado por aquele projeto, pese embora o seu centralismo em redor da capital e de um ou outro centro urbano; quase-sempre no litoral, porque isto um dia afunda à esquerda. A intervenção que a rede ex aequo tem desenvolvido, em Portugal, desde a sua fundação é muito meritória e não acontece sem enquadramento legal; é uma associação com financiamento público, transparente e cujo objetivo passa pelo apoio de jovens lgbti. Tem também grupos locais que, em muitas histórias dos hoje adultos felizes, foram clareiras de luz nos pântanos da opressão. Coisas objetivas e quantificáveis.
Posto isto, e tentando isolar os meus amores (e as minhas convicções), aquilo que mais me incomodou no discurso da Manuela Moura Guedes foi a forma como deliberadamente se misturaram assuntos importantes sem falar de forma informada sobre algum deles. A conversa é encadeada depois dos negócios dos bancos e dos ladrões habituais; coisa que o povinho adora ouvir e aplaudir. Segue-se uma história sobre um holandês louco... Nesta teia, a procuradora mistura igualdade de género com identidade de género e identidade sexual; dá para o mito dos comunistas comedores de crianças e argumenta que, imagine-se, a escola não é sítio de ativismos nem de políticas, porque o i - de LGBTI - é, segundo a sua douta inspiração, sobre "ideologia de género". No Brasil, o governo Bolsonaro diz o mesmo para agradar aos evangélicos e fala que a escola deve ser um local sacramentado pelos hinos nacionais. Manuela Moura Guedes termina com receio que as crianças, corrompidas pela "ideologia de género", acabem, em casa, entendendo-se armários, de tão baralhadas que estão dos 51 géneros diferentes que, alegadamente, a rede ex aequo ensina na escola.
O espaço público é sobre o eu e os outros; os outros são mais do que o calor dos nossos preconceitos e a utopia da nossa educação. Esses outros merecem-nos respeito; sempre. Esta coisa do populismo dos espaços do judiciário e dos poderes fora do sítio e das procuradoras do jargão ganhador da audiência, preenche um espaço em que os heróis passam a ser os agressores. É uma inversão dos papéis, porque todas as coisas parecem não ter sítio. Tudo fica mais dantesco quando o discurso é produzido por uma jornalista que, até hoje merecedora do meu respeito, foi sonegada pelo poder. Moura Guedes foi, em tempos, riscada e afastada para fora do feudo, de forma linear e azulada, como no tempo em que os sexos eram sentenças e a televisão a preto-e-branco. Mundo binário e, poucas vezes, arco-íris.
Dois dias depois do Dia da Mulher, as televisões privadas estrearam programas em que mulheres são o gado e os homens os agricultores e as mães quantificam fêmeas rivais pelos seus atributos morais. Ao mesmo tempo, existe um juiz que faz citações da Bíblia aparentemente ignorando as regras mais básicas da lógica e seriedade de um discurso; fundindo opiniões com argumentos. Hoje, a procuradora da SIC trata assuntos sérios como a leviandade de um negócio de carpintaria onde armários se constroem com preconceitos; na UMinho, existe um grupo de heteros orgulhosos com medo que os comunistas/esquerdalhos lhes comam as liberdades. Ninguém pensa que, no meio deste mundo cheio de opiniões sobre tudo, há olhares envergonhados que descem da cabeça para o prato em jantares de família? Que estas opiniões são formas de legitimação do ódio e agressão que, em muitos casos, conduz a discussões ou até mesmo formas de violência? Ninguém pensa que existem palavras que, com poder das armas, da lei ou doutro normativo, ajudam a agredir, e, vezes de mais, a matar?
Há algum de profundamente errado nestas narrativas onde as vítimas são, em truque de mágica, transformadas em agressores. O espaço que devia ser de todos é, como sempre, sobre os nomes dos mesmos com fardas diferentes; isto é triste.
Escrito em 18 de março de 2019
Luís Gonçalves Ferreira
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