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Mensagens

A mostrar mensagens de janeiro, 2018

À Mafalda

Chama-se Mafalda, mas podia ser perfeitamente outro nome qualquer. Lógico será que viverá e será sempre Mafalda, porque se vai convencer disso ao ser chamada assim a vida toda. A vida toda: o nome tem essa dimensão temporal; uma espécie de companhia e amor para a vida toda. Mas, ao escrever este texto sobre como é ser tio a segunda vez, queria dizer à Mafalda que ela é, antes de ser o nome que tem, a espera e a ansiedade carinhosa da minha irmã Júlia e do pai, o Xavier. Vi-os, durante a expectativa que foram os nove meses de chegada, preocupados em construir o sítio que a receberá amanhã, quando chegar ao lar que conhecerá esta nova dimensão, claramente mais ampla e grandiosa, e sobre o qual já escrevi. Escrevi sobre a Mafalda mesmo antes de pegar nela ao colo; mesmo antes de ver que o vi hoje. Escrevi sobre a Mafalda escrevendo sobre o amor que a gerou, esperou e, agora, recebe; chamou-se Pretérito mais que perfeito.  A Mafalda é por isso amor, antes de outro nome qualquer; mas nós

Roma em dezembro

Gostava de vos escrever observações muito pertinentes sobre o que estou a ver em Roma, mas não consigo. A cidade gera um vazio; uma espécie de nostalgia, de silêncio... um apagão emotivo. Quando cheguei à Galleria Borghese e vi que tinha à minha espera uma Mostra Bernini (que termina em fevereiro de 2018) mal podia acreditar... Cada Caravaggio que vejo é um murro no estômago... A Dafne linda, deslumbrante, fugitiva ou aquele sítio onde o Hermafrodito dorme; como é possível dar vida a tecido e botões em mármore? Como? Os frescos do Gesú e o baldaquino de São Pedro do Vaticano... Roma é um compósito, um arame farpado, uma espécie de síntese onde várias das minhas últimas dúvidas esbatem no segundo em que se enrolam em si mesmas.  Perguntei-me onde estaria a República nesta renovação de heranças históricas, coabitando com o Império, o Papado e a Monarquia nacional. Creio saber uma resposta que vou ver confirmar amanhã; vi-a do autocarro, quando regressava da Fontana di Trevi. Itália

Natal de ante-véspera

O natal é um tempo em que as faltas regressam vindas do fim do mundo como cavalos negros cheios de ganas para vencer a corrida. Hoje, em Vila do Conde, as lágrimas descontroladas da saudade de alguém fizeram-me lembrar dos natais tão difíceis que passamos, em família, após a partida da minha avó; como do momento, há um par de anos, em que um embrulho destapou o rosto saudoso gravado a carvão e todos nos acantonamos, chorando cada um por si, no sítio mais escondido quanto possível: como animais morrendo longe dos perigos.  O natal é como dióspiro por amadurecer, mas não foi sempre assim... alturas houve, quando o corpo estava menos maduro e o coração sem estes calos, que era só luz branca; talvez seja a saudade e a falta o principal sentido da união familiar e, assim, do próprio natal conforme o entendemos; como o menino pequenino tão longe como tão perto dos braços quentes da mãe. Luís Gonçalves Ferreira

A luz da minha cozinha

O que de mais bonito existe em minha casa é a luz que entra pelas janelas da cozinha durante a manhã. Saio do quarto meio que triste, pensativo, ensonado, e encontro nas janelas da cozinha algum tipo de conforto. A luz é bonita mesmo que não exista sol. A luz que entra pela cozinha é a mais bonita das coisas que esta casa tem: à frente dos quadros e as peças velhas que colecciono. O meu gosto pelo velho no tempo presente; numa síntese do espírito... A luz da minha cozinha ganha mais sentido quando me disponho a vê-la, especialmente nos dias em que custa a desligar da cama e enfrentar. Enfrentar: que nem aqueles ignorantes fazem aos touros, em pleno estado de civilização avançado, ainda precisando demostrar que o ser humano é o mais forte dos seres animados; que os supera e domina; que tem a estratégia do seu lado, nesse eterno conflito da razão e da emoção. A luz da minha cozinha é como a adrenalina masculina esbarrada nos cornos de um bicho; mas aqui o risco é pouco: não há neces

Preto e feminismo no nosso tempo

Não sei se já se questionaram, a propósito da iniciativa da Time's Up, do porquê da escolha do preto. Confesso que é algo que me incomoda, especialmente numa fase da minha vida em que leio sobre roupa e cor, nesse âmbito da produção de sentidos através do que vestimos, enquanto plataforma de linguagem, mas também de confluência da economia, da indústria e das disponibilidades (financeiras, ideológicas, sensoriais). O preto não é certamente inocente e, digamos, é a cor mais conveniente: é o tom típico do smoking, roupa burguesa que preconiza o afastamento do homem moderno em relação aos luxos do Antigo Regime, em função de uma mente liberta, concentrada nos alvores racionais da luz fria mormente afastado do luxo áulico, triunfal e magnético do vermelho, do amarelo e do azul. A cor ácida, magnética, sólida, cheia, é o excesso nos espelhos barrocos, que multiplicam a ilusão dos sentidos nos canotilhos, sedas e veludos, nas perucas e nos postiços. É de engano que se adornavam as i