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Preto e feminismo no nosso tempo

Não sei se já se questionaram, a propósito da iniciativa da Time's Up, do porquê da escolha do preto. Confesso que é algo que me incomoda, especialmente numa fase da minha vida em que leio sobre roupa e cor, nesse âmbito da produção de sentidos através do que vestimos, enquanto plataforma de linguagem, mas também de confluência da economia, da indústria e das disponibilidades (financeiras, ideológicas, sensoriais).

O preto não é certamente inocente e, digamos, é a cor mais conveniente: é o tom típico do smoking, roupa burguesa que preconiza o afastamento do homem moderno em relação aos luxos do Antigo Regime, em função de uma mente liberta, concentrada nos alvores racionais da luz fria mormente afastado do luxo áulico, triunfal e magnético do vermelho, do amarelo e do azul. A cor ácida, magnética, sólida, cheia, é o excesso nos espelhos barrocos, que multiplicam a ilusão dos sentidos nos canotilhos, sedas e veludos, nas perucas e nos postiços. É de engano que se adornavam as igrejas, os palácios, os altares, contra os suores mundanos cravados pela máquina a vapor.

A cor preta - que é usada em favor das mulheres - não causa, por isso, transtorno aos homens, pois a maioria deles já usaria um fraque ou um fato negro, por formalismo e conveniência da forma contemporânea do masculino se apresentar formal. O preto é, por isso, linguagem do estereótipo masculino e o protagonismo da iniciativa só ganha sentido porque todas as mulheres, na exuberância dos seus decotes, curvas, do fetichismo machista da moda, do consumo, aceitam e se covalidam no que as mentes dos homens especificamente lhes direccionam como os produtos do vulgar, do aparente, do audaz e do material. As mulheres são as figuras da Eva, da vaidade, do terreno...

O preto só tem este impacto porque as indústrias - a do entretenimento, a da moda, a do cinema, a do capital financeiro - (e os homens) assim o entenderam. Se a proposta fosse vestir o vermelho ou o verde ou o rosa, o impacto não seria o mesmo: não são essas cores masculinas, condizentes com a sobriedade e o rigor do poder, do dinheiro e do capital; talvez apenas o azul - e só o azul - tivesse servido o mesmo propósito. 
O preto é a cor da falta de compromisso, da transparência, mas, também, da reivindicação. Era assim pensado, na luz do renascimento, quando o preto veste a nova ortodoxia de Erasmo de Roterdão, Martino Lutero, Calvino, D. João III ou Filipe II de Espanha, como o foi, no século XIX, quando vestiu o homem citadino, burguês, moderno e embrenhado da "aufklärung", preconizado no dandy. A mulher era, para o romantismo, bela, autêntica, um poço de virtudes, que deveria ser, por isso, agasalhada e protegida, porque a família era a pedra angular do progresso. Enquanto a moda do homem estatizou no preto do casaco, a moda feminina, entre o corte do império e o design neo-gótico dos decotes, manteve-se oscilante, numa metamorfose quase industrial dos têxteis de algodão. Nos alvores da modernidade, a mulher enfermava de todas as desvirtudes da humanidade, tendo sido castigada, com as dores do parto, pelo pecado original; restava-lhe o caminho da bem-aventurança familiar, rezando, fiando e tecendo, cuidando do lar; as mulheres públicas eram as mal-vistas, as que fugiam do controlo pela honra; o homem ouvia-a no confessionário e na morte.

Hoje, neste tempo sem uma legenda histórica fixa, em que as mulheres se manifestam nas entrelinhas de uma narrativa (ainda) maioritariamente masculina, falta ainda dialogar com as pares, encontrar o diálogo, mandar o sistema paternalista de validação normativa (e a Chanel e a Dior) à fava, e vestir verde ou o amarelo ou lavanda, mesmo que todos os homens continuem a usar o preto. Neste aspeto, a manifestação nos Globos de Ouro do ano de 2018 é sintomática do sítio onde nós vivemos: uma massa homogénea de gente, sujeita à mediatização fácil, à normalização aparente, onde ninguém é trans-nada querendo ser trans-tudo; fazemos performance nos nossos confortos e lugares comuns e temos, maxime, uma opinião pública determinada muito longe da nossa racionalidade aparente. É, afinal das contas, sobre identidade que falamos e o preto, pela transparência sólida que significa (expondo e escondendo), fica-nos bem e nunca nos compromete.
Luís Gonçalves Ferreira

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