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Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2014

O laço

Foste o para sempre mais próximo do qual já estive. Do irremediável sabor de nem ter medo da entrega, da paixão eterna, ou da falta de lucidez de partir para um mundo sem nada na algibeira. Achei que me alimentaria do teu amor, dele retiraria frutos, vantagens e um sustento espiritual pelo qual me escusaria a partilhar como mais ninguém. Auto-suficiência da tua luz. Lembro-me de acariciar e desejar continuar a fazê-lo, por mais longe dos tempos que estivesse. Ficar ali, sentado, até que as pregas dos olhos se juntassem às das maçãs do rosto e rugas da boca escorregassem nos contornos do queixo. Lembro-me de te querer tão ardentemente que sentia a pele descolar-se do músculo e o músculo dos ossos. O febril que era o meu corpo quando tocava o teu.  És como uma memória infantil presa num jardim onde rosas moram com espinhos. Sei do cheiro de ser eu contigo, mas já não sei do teu cheiro. Não é mais meu. Essa é a metamorfose do estar longe fisicamente: a fusão da história que, sozinha, a

Sombra

Há uma dada altura na minha vida em que ceguei. Ceguei loucamente. Deixei de ver os meus olhos, a minha boca, e até de cheirar o meu perfume. Perdi as sinestesias e meta-físicas. Deixei-me nos astros e no irremediável de outro corpo. Ceguei em mim, mas vi-me, mais adiante. Decorei uns traços, a textura de uns cabelos e a calma de um cheiro. Nenhum deles era meu, mas sabia-os de cor. Comecei a inventar-lhes dramas e falas e achar instâncias. Já fui cego numa causa tão própria e transfigurada... Eu ceguei em todas as formas que tinha, em qualquer dos sentidos que sentia. Enganei o cérebro. Talvez tenha sido o mais próximo da morte que algum dia tenha estado: uma total estranheza sobre os umbigos.  Há coisas na vida que cegam. E o amor, esse cósmico e estranho monitor, aqueceu um ferro quente e furou-me os olhos até ao cérebro.  Há um misto de tristeza e indiferença que sobra, agora. De profunda tristeza, talvez seja o termo correcto. Houve tempos em que nem a minha sombra conseguia

Teatros

O pano deslizou, como no final da cena. Escorregou o pó, e, com ele, o drama do aplauso que já não há. A maquilhagem está velha e a pele cansada. A voz revoltou-se e ficou rouca: talvez ainda grite "não quero mais". As bailarinas, de pés pequeninos, aprontam as pontas para a despedida: o coreógrafo dá os últimos retoques à circunstância da sua obra prima. Eu, calado, escuto o triunfo da sala. O peso da glória dos estandartes do Reino, da velha pradaria de saias e marfins dos bastidores. As inglórias paredes do corredor sem fim, até à estrela da companhia. Do único camarim exclusivo sai agora mofo. Outrora ouviam-se berros e uma contagem à boca dos bastidores. A mais elevada de sempre numas goelas do percebedor de luz: "mais à direita, Madame ". Acabou. Imperava agora o silêncio, entre um teto grelado e outro pedaço caído e um palco de talhados buracos na madeira. Quantas dores vivemos na vida e quantos regressos fazemos ao local onde fomos felizes? Quantos textos

À terra que me viu nascer

No meio do Norte, ao oeste do mar, plantada terra-a-terra, suor a suor, com cheirinho a rio e erva molhada. Com sorrisos semeados a pregões, crianças brincam em tendas de sonhos com futuros semeados no olhar. De jeito mimado com agulha de bordar, Vila Verde tem futuro e tradição. Onde pontes se erguem numa linha, com um horizonte fitado nas malhas do passado. Uma identidade convicta, numa voz que diz gritando, lá longe, com uma calma sem igual. Onde natureza respira e a evolução transpira, em poros fartos de vida. É uma terra com alma, sabedoria, cheia de pês e bês pelos vês. Vila Verde rima e soletra amor, companhia, respeito, como um sono bom de quando estamos completamente apaixonados. Vila Verde é namoro, e uma felicidade espelhada na água que transpira, bordas a fora, entre a gargalhada de um filho e um abraço de um avô. Vila Verde é um mimo no Minho e uma ternura sem par, onde as suas gentes, convictas, apaixonadas, vividas, se orgulham e enchem o peito, cantando. Encantam e apr

Posto dos Correios

Vivo num país de mulheres com saias de fazenda, feitas nas costureiras. As varizes trepam as pernas, como se fossem raízes de árvores. São mulheres do campo, da terra, com filhos e netos, e maridos para cuidar. Sou de um país sem moda nas peles morenas, talhadas do sol e da teimosia da vida. Da aldeia onde o sino toca à morte e à esperança do raro nascimento. País de faladeiras gentes, com mãos de calos feitos e pés casposos, de andar descalço ou calçado, porque até a modernidade tem um preço. É gente da modinha e do rancho, e das típicas festas: há sempre um jantar ou um almoço a guarnecer, como depois da jorna nas grandes casas de dinheiro. Este é o país que deu colo à evolução, ao 25 de abril, e à Europa. É o país que mais sofre com cortes, com despesas, com um Estado que lhes prometeu proteção e segurança, e um território de além mar, e falhou em quase tudo. Para eles Angola e Moçambique não eram Portugal, porque isso não interessava nada. Era treta estadista. Sabiam que o tra

Há Histórias Sem Final Feliz

Aquele amor - louco, doente e quente, desmedido, odioso e sem noção - fê-los estranhos um do outro.  Tenho uma inútil e revoltante incapacidade para saber do tempo de ti. Perco-me, ao recordar-te. Os nossos momentos são agora difusos. Não sei se foi há um ano, ou três, ou se nos conhecemos em 2010 ou 2011. Não me recordo, juro. O tempo não passa por nós e isto é estupidamente verdade. Sinto-me um velho ou um doente com memória selectiva. É tudo confuso e difuso, e os sentimentos agora são remediados.  O mais esquisito é que perdi o teu cheiro, a par do nosso tempo. Não sei dele e não me lembro de como era a tua textura: e nem os meus textos me deixam lá chegar. Não sei da última vez em que beijei os teus lábios, embora guarde imagens desfocadas. Não me lembro quando me revoltei da última vez ou de quando achei que eras tu quem me iria receber, ao balcão da eternidade dos sentimentos, por mais uma esperança infundada que teimava em cavar. Não me recordo, eu juro que não. Sei que nã