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Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2014

O trivial e o que te faz feliz

As trivialidades são quase sempre o mais importante. É das coisas pequenas que se inunda a vida. Não há-de haver assunto entusiasmante todos os dias, mas existe um elo comum de coisas semelhantes que se partilham e sustentam a construção de uma relação. Nisso, as relações são como a felicidade: há pingas dela que são tão absolutas que te deixam anestesiado, mas a maior parte do tempo estás com os pés molhados em água velha, nas pequenas felicidades que sabes de cor e já nem valorizas. Luís Gonçalves Ferreira

Rei Autista

Deitou a cama por baixo dele, embrulhou o cobertor, e a mão escorregou quase rente ao chão, num descaído de braço que se sentia a pensar. O dedo começa a ver um frio de serpente que o encaracola, por ele a cima, numa animalidade sem igual. Sente-se um calafrio geral e o meta-corpo encosta-se mais um pouco, até onde o ombro descaído permite. O dedo escorrega logo a seguir, toca o chão, e traz consigo o resto do corpo. O animal não desiste, mesmo sabendo que o seu peso era o causador do deslocamento que lhe poderia causar a morte, a fuga precipitada ou mesmo o fracasso de uma conspiração. Determinada, a besta enrosca mais um pouco, ergue a cabeça e estica o rabo, naquela força final de quem quer alcançar a fruta mais virtuosa da árvore da vida. O moribundo, cheio de sede, sente catucarem-se-lhe os lábios por uma suculenta sensação. Era como num leito do berço que se chupa, suga com força, sendo como demasiado óbvia a imagem da mãe que encosta o teto à boca do filho, naquela que poderia

Mistério da Vida

Plano verde, um caminho de pedra e as mesas prontas para a partilha. Venho de baixo, de trazer mais uns convidados. Ou uns amigos. Talvez família, mas sei que era amor. "Onde estão?", perguntam-me, curiosos, por entre questões sobre a piscina e explicações sobre o parque. Respondo, entusiasmado, "mais a cima. Ali, são os que saltam à corda!". Aproximei-me mais um pouco e a minha mãe, de costas voltadas, com uma amiga de infância, ria-se como uma menina, saltando à corda. Ou como duas meninas ou três, pareciam um batalhão que até fiquei confuso. É a imagem mais bonita da minha vida nos últimos tempos: vi a minha mãe menina. Ela está onde sempre esteve, apesar do trabalho, das canseiras e de uma rotina que, tantas vezes, deixa planos para segundo plano. Hoje foi especialmente bom por isto e por ter a terra, as pessoas, os cantares, as mantas no chão e o verde da grama perante os olhos. Pela certeza absoluta de que a natureza, em si própria, me humaniza, pelo sentir c

Fato escuro

Um tímido olhar que desce, camisa a baixo, quando penso na tua morte. É um silêncio perturbador que toma conta do meu luto, como o final de um enterro. Existe algo de muito familiar nestas lágrimas secas, nesta falta de tristeza e talvez nesta estúpida esperança de que alguma coisa mudasse. Mas não. Teres partido foi como teres morrido. Por mais que acredite em vida depois da morte, respeite as almas e as afeições, o meu lado analítico, lógico e crítico diz-me que morreste. Há noites em que acordo e parece que ainda há do teu perfume numa casa onde não tinhas estado. É estranho saber que a morte tem de absolutamente imenso quanto mágico: dá para tudo, desculpa tudo e responde a questões nenhumas como dá respostas a todas. Tal e qual a acreditar em deuses. O silêncio perturbador da morte transformou-se na felicidade de estar sozinho. Haverá revolta mais profunda do que essa? Luís Gonçalves Ferreira