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Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2018

aos anjinhos nas procissões -

Poucas coisas na vida me satisfazem tanto como trabalhar neste regaço em caí por simples acaso. A minha mãe podia ser operária fabril ou médica; podia ter sido outra coisa qualquer - assim como a minha avó; podia não gostar tanto deste trabalho. Mas não: as nossas vidas são de cetim e com cheiro a veludo. Esta fotografia fala de todos estes azuis. Luís Gonçalves Ferreira

Propriedade

Quando compro ou me oferecem um livro, tenho o hábito de lhe escrever o meu nome e o ano. Não existe um sítio específico onde faça questão de o gravar, mas tento interferir o menos possível na estética e na semiótica própria do livro; há, quase sempre, uma hesitação na gestão de espaço disponível (que nem sempre é pacífica). Sinto que não devo contaminar os agradecimentos e escrever na página de rosto parece uma violação do património antropológico que o livro guarda em si mesmo. Restam poucas opções, porque escrever-lhe entre as palavras está completamente fora de questão. Na verdade, as relações de propriedade e, portanto, as relações de poder, implicam sempre cedências e gestão de espaços, de expetativas, mas sobretudo de silêncios. Os silêncios, nos livros, são os espaços brancos e é neles que cabem as (possíveis) marcações que, logo à partida e sem ler, faço questão de introduzir nos meus livros. As relações de poder nos livros, como em todos os contextos, implicam gestão de

nuvem

Chega o silêncio e a porta fecha devagarinho como um potro inocente. Ainda sei aquelas mãos escorregarem no corrimão e as pernas pequeninas perdidas pelas escadas. O trabalho sobe aos braços e a chave roda na solidão de sempre. É junho e uma cicatriz tremenda está na linha do horizonte; como se fosse um raio de luz acordado na manhã errada. Era provavelmente terça-feira e a máquina que descobre monstros rodava, rodava e rodava e fazia um barulho tremendo e assustador. Pequenino, cheio de medo, rezava; para que as raízes estivessem quietas no fundo da barriga. Bastariam uns dias para que a vida entrasse num escorrega tremendo, cheio de curvas, para nunca mais se endireitar; como crianças gritando num tubo amarelo. A costela nunca mais foi a mesma e o azul, minha cor favorita, fez-se um pouco mais cinzento. O relógio bate certo e os gritos no corredor apelam à injustiça de a vida não ser aquilo que se quer que seja. Morremos da nossa bem-aventurança e já não estou da parte de fora das c

Chegada a Santorini

Os gregos inventaram a democracia e os romanos um sistema burocrático de império governável à distância. Os medievos revolucionaram o aproveitamento da energia hidráulica, criaram o género no vestuário e o relógio. Os modernos fundearam a civilidade e a privatização. Os contemporâneos deram ao mundo a máquina a vapor, a lâmpada, a medicina moderna e o computador. O pós-modernismo (ou lá o tempo em que vivemos) democratizou a internet e o acesso aos céus. O tempo é elástico, mas este progresso que nos parece constante talvez não o seja. Tenho a certeza que se um grego antigo conseguisse ver Santorini dos céus ter-se-ia louvado por Zeus; talvez tivesse aproveitado a vantagem para fazer uma ditadura ou ganhar uma guerra; ou, por agradecimento, houvesse mandado erguer um templo. O acesso ao novo, a procura incansável pela validação e distinção em relação ao outro garantiram o nosso progresso; não necessariamente positivo; não necessariamente constante; as novas tecnologias tornam tudo mai

sobre os setenta anos do Estado de Israel

"Na Segunda Guerra Mundial, a comunidade judaica deste país contribuiu por completo com as nações que amam a paz e a liberdade contra as forças da tirania nazi e, com o sangue de seus soldados e dos seus esforços de guerra, ganhou o direito de ser reconhecida entre os povos que fundaram as Nações Unidas." Este é um dos parágrafos da Declaração de Independência de Israel, assinada em 14 de maio de 1948, há exatamente 70 anos. Em resposta, os vizinhos, que não se reviam no local, ocasião nem princípios que fizeram da Palestina o destino dos judeus, iniciaram uma das múltiplas guerras locais que Israel acabaria por vencer. Injetado na veia das vítimas, Israel tornou-se num incrível caso de análise para a psicologia clínica, naquela teoria de que antigas vítimas são potenciais agressores. O acontecimento de 1948 poderia ser lido como o preço que as nações regionais pagaram à fatura do direito à autodeterminação que, de forma indireta, também os tinha beneficiado pelo desmant

Das asas da Carolina (e ao senhor Fernando)*

A Carolina Deslandes tem uma música chamada Adeus Amor Adeus. É capicua e uma despedida muito bonita que repete adeus, (a)deus, adeus, num grito que talvez mudo, e promete um qualquer dia com o que há de bonito no mundo. Não é claramente sobre um só tipo de amor e às vezes faz lembrar uma quase-despedida, como aquela que, nas margens do rio Minho, no silêncio fizemos. O bicho rouba-nos pessoas que amámos profundamente; que nos acompanharam desde pequeninos. Há segredos que aquele vento do rio Minho levou para além da ponte que, ao longe, víamos. A água é um batismo e a música é o bálsamo.  Até um dia... canta a Carolina que tem nome de arroz e escreveu um poema musicado nas asas de um anjo. Um outro adeus, branco e quentinho, feito até já; espero e rezo, em silêncio; Amor. *texto escrito em 26 de abril de 2018. Algumas semanas depois, o senhor Fernando faleceu. O vento do rio Minho tinha razão.  Luís Gonçalves Ferreira 

à mamã

Conhecemo-nos há muito tempo, mas há partes da minha mãe que ainda não conheço muito bem. Tem os olhos mais bonitos que já vi e escora-me todos os dias, mesmo no silêncio imenso que às vezes se mete entre nós. A minha mãe não é, em nenhuma parte da nossa história, minha amiga: é minha mãe com toda a propriedade e o respeito que isso acarreta. Vejo essa disciplina em todos os sítios em que estou e naqueles para que sou convocado a estar. A minha mãe tem o coração mais bonito que conheço, tantas vezes mal-tratado e pouco compreendido; ensinou-me a ser o que devo ser, nos diversos contextos. Auxilia-me e ampara-me, especialmente quando mais preciso e sinto mais desprotegido. É a ela e ao meu pai que devo o profundo sentimento de família que, com um só olhar, fito os olhos das minhas três irmãs. Há muito da minha mãe que me lembra da minha avó e muito da minha avó que está na minha mãe: vejo-o todos os dias, sem que isso seja um peso para qualquer das partes. A confusão não fui eu quem