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Teatros

O pano deslizou, como no final da cena. Escorregou o pó, e, com ele, o drama do aplauso que já não há. A maquilhagem está velha e a pele cansada. A voz revoltou-se e ficou rouca: talvez ainda grite "não quero mais". As bailarinas, de pés pequeninos, aprontam as pontas para a despedida: o coreógrafo dá os últimos retoques à circunstância da sua obra prima. Eu, calado, escuto o triunfo da sala. O peso da glória dos estandartes do Reino, da velha pradaria de saias e marfins dos bastidores. As inglórias paredes do corredor sem fim, até à estrela da companhia. Do único camarim exclusivo sai agora mofo. Outrora ouviam-se berros e uma contagem à boca dos bastidores. A mais elevada de sempre numas goelas do percebedor de luz: "mais à direita, Madame". Acabou. Imperava agora o silêncio, entre um teto grelado e outro pedaço caído e um palco de talhados buracos na madeira. Quantas dores vivemos na vida e quantos regressos fazemos ao local onde fomos felizes? Quantos textos decoramos e falas jamais esquecemos? 
Há trechos, porém, que nunca mais recordamos. Há produtos que ficam para sempre na nossa pele, e sorrisos que jamais esquecemos. Há personagens que partem, "sem nunca mais voltar", e há personagens que "vão para nunca mais". Há um choro mudo na alma de cada um de nós, como há um ator e um artista dramaturgo nas próprias causas literárias. Todos somos poetas, mas há uns, porém, que são demasiado sofridos para conseguirem prender no peito. Há quem nos ofereça partituras, livros e viagens em tons de cinema. E há quem cale, baixinho, num livro analfabeto das gentes de perto. Há quem se revele na família e há quem, por egos em chamas, chegue mais alto. No final, conta a mesma solidão e a sensação de que por mais letras que se matem existem verdades que duram para sempre. Tudo é sobre amor: da mais calma guerra à cruzada despedida de um caixão. É tudo sobre amor. Da arte e a imagem isolada que nos leva à praia todo o ano. Há alguma coisa no mar que vai além do tempo, como o há nas pessoas de quem gostamos. 
Tudo morre. Há que saber dizer adeus. Há esperança no pano que desce, no pó que desliza e no aplauso que se cala.

Luís Gonçalves Ferreira

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