Senhora Presidente da Academia Portuguesa da História, Professora Doutora Manuela Mendonça,
Senhores Membros do Conselho Académico,
Senhoras e Senhores Académicos,
Senhor Dr. António Carlos Carvalho, representante da Lusitania Seguros, S.A.,
Ilustres Doadores,
Senhoras e Senhores,
Vestidos de Caridade, Vestidos de Fé, Vestidos de Serviço, Vestidos de Pátria.
São vários os nomes que podem ter os vestidos que, ao longo da História, foram oferecidos de ricos para os pobres, dos homens e mulheres para os deuses, dos senhores para os seus criados e criadas, de um país ou reino para o seu povo, do ser que não se é para o que se quer ser. Em todos eles há pedido, necessidade, dádiva, hierarquia e crepúsculo. A minha avó Júlia, costureira de ofício e filha de um armador de caixões, fez durante décadas roupas de “anjinho” que alugava nas festas e romarias do Minho. Miguel Torga, num de “Os Contos da Montanha”, referiu que nem o Coelho nem outro qualquer da aldeia o reconheciam vestido de capa vermelha, coroa de espinhos e cana verde. Crianças e adultos vestidos de santos e santas, Marias, Jesus e querubins, transfigurando o seu corpo numa experiência quase profana que ascende a matéria à visão penitencial de céu. Jovens e adultos, vestidos do ser que não são mas querem ser, usam dos artifícios das roupas, das maquilhagens, das purpurinas, para sonegar ou expressar verdades, tornando os seus corpos nas suas fábulas, criando arco-íris e construindo-se gente feliz. Ou mesmo aquele São Martinho de Tours cuja lenda diz a capa ter vestido um Jesus incógnito ocultado em mendigo ou aqueles reis cujos mantos, ultrapassando os limites dos seus corpos, lhes conferiam majestade. Os vestidos são metamorfose, performance e poder.
Estar hoje, nesta Academia Portuguesa da História, significa, entre estas pinceladas-quadro que esbocei, uma enorme felicidade e um sentido apurado de responsabilidade. Por ser um jovem investigador cuja dissertação de mestrado transformada em livro recebe este prémio e por representar todos os jovens que, pela primeira vez na história, viverão pior que os seus pais e vêm os seus diplomas graduarem o futuro a um lugar incerto. Mas é sobretudo pelo meu avô, um filho sem pai que um dia foi pé descalço, viveu num moinho, conduziu bois a limpar fossas, que, aos 87 anos, sabe do seu neto aqui. Esta consciência do lugar está relacionada com este livro.
O objeto de investigação apresentado, trabalhado, debatido e problematizado nas páginas da minha monografia, tantas vezes tido como secundário da história económica à história política ou social, é uma síntese dos sítios racionais e emocionais onde cresci. Há, por isso, na análise empreendida sobre as esmolas em roupa dadas pelos ricos aos pobres a visão abrangente e crítica que, sem perder o sentido do documento e o rigor do seu tratamento, vai da essência ontológica do objeto à sua dimensão epistemológica. Não perdemos o sentido tecnológico do têxtil ou dos acessórios que fazem do corpo biológico uma realidade social: talvez por isso quisemos aprender a preparar, escolher, cardar, fiar, tingir e tecer a lã, e procuramos inquirir as ovelhas para compreender a importância da natureza do lugar no “saber fazer” das realidades humanas. Se ousarmos entender que a alma é o que não se vê além da matéria de facto que se apresenta aos nossos sentidos, “Vestidos de Caridade” pretendem discutir esse “espírito” da aparência que compreende o campo cultural e simbólico da indumentária dada aos pobres.
O problema historiográfico das dádivas em roupa entre dois polos em circunstâncias desiguais de poder examina-o pela cultura e pelo símbolo. Conceitos que são, como sabemos, indissociáveis do contexto humano que é o objeto da história enquanto ciência. Há nestes pobres vestidos de pobres o ser-se homem e mulher e a discussão que à roupa convoca, sempre mediada pela consciência do tempo histórico, o aparentar-se, o tornar-se e o ser-se um género. Este trabalho permite baixar deste espaço teórico e conceptual e encontrar o humano, desvendando, através das fontes históricas, os nomes e parte da textura material de que se compunha a aparência e identidade destes largos estratos da população que, no período estudado, sem propriedade ou família estavam expostos às crises frumentárias, às guerras, à inflação e à pobreza e viam na esmola uma das formas de aliviar a grande vulnerabilidade das suas vidas. No fundo, pobres que eram como o meu avô.
Este prémio coloca a Academia Portuguesa da História ao lado da pertinência destes questionamentos. Creio que constitui um encorajamento para que se continue a fazer história da pobreza e da assistência com inovação e qualidade; que não se percam os pobres no renovado interesse pelas elites cujas sedas e rendas têm encantado os olhos dos estudantes universitários. Hoje, apresentam-se importantes desafios à História abertos pela globalização, digitalização e aceleração da produção de informação. Há uma nova dimensão do tempo que, das viagens “low-cost” ao “fast-fashion”, questiona os limites do próprio planeta – o espaço-casa em que habitamos. Este novo alcance da palavra tempo apressa os processos sociais em curso, debate a memória humana, questiona a verdade e a mentira, mas também deve interrogar o tempo-espaço subjetivo estruturado em sociedade. Os limites temporais deste presente experimentado ultrapassaram os alcances do corpo, da família, da casa ou da cidade. A “linha do centauro”, que divide o alto do baixo corpo e que, segundo meu entendimento, estrutura o vestir, parece ter-se alavancado do físico. O computador ou o "smartphone" prolongam funcionalmente o nosso corpo para além das fronteiras do verbo “ser” que constrói o humano e o torna tangível. Que impacto terá este processo na nossa relação com o espaço, nas revoluções ou no alcance do incómodo que espoleta a mudança?
Sendo a História um campo de conhecimento que objetifica tempo e espaço enquanto realidades de um saber caber-nos-á uma relevância social na gestão das entropias da memória geradas pelo quantitativo da informação. Há um problema com o arquivo das nossas sociedades e esse arquivo em crise não tem proprietários nem chaves. A fobocracia redimensionada pelo novo coronavírus parece evidenciar a fratura exposta pela falta de empatia e de ritual. Algumas vozes questionam a sociedade espantosa do conforto e das mobilidades que fez com que o meu avô atingisse os 87 anos depois de deixar de ser pobre, calçar os seus sapatos, vestir mais alguma roupa do seu armário, ver o seu trabalho recompensado por um salário justo e digno gasto num mundo democrático, local-espaço de opções e riscos.
Antes de terminar, gostava de deixar alguns agradecimentos essenciais. Em primeiro lugar, à Academia Portuguesa da História, na pessoa da sua Presidente, por valorizar o livro enquanto objeto de conhecimento e identificar a importância do “vagar” que esse “objeto-coisa” tem no seu “espírito”; à Lusitania Seguros S. A., representada pelo Dr. António Carlos Carvalho, por acreditar que as ciências moles também geram inovação; à minha casa epistemológica - a Universidade do Minho -, por me ter possibilitado aprender tanto com seus professores e professoras e demais quadros; à minha orientadora e amiga, Professora Doutora Maria Marta Lobo de Araújo, por me ensinar muito mais do que alguma vez lhe poderei agradecer; à Santa Casa da Misericórdia de Braga, na pessoa do senhor provedor Dr. Bernardo Reis, por ter financiado a publicação da obra; à Edições Húmus pelo zelo paciente no tratamento das minhas inexperientes exigências gráficas.
Por último, à casa dos meus afetos, espaço de muitos substantivos, mas que tem na minha mãe e no meu pai os seus principais alicerces.
Obrigado.
Luís Gonçalves Ferreira
Lisboa, 9 de Setembro de 2020.
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