Avançar para o conteúdo principal

A luz da minha cozinha

O que de mais bonito existe em minha casa é a luz que entra pelas janelas da cozinha durante a manhã. Saio do quarto meio que triste, pensativo, ensonado, e encontro nas janelas da cozinha algum tipo de conforto. A luz é bonita mesmo que não exista sol.
A luz que entra pela cozinha é a mais bonita das coisas que esta casa tem: à frente dos quadros e as peças velhas que colecciono. O meu gosto pelo velho no tempo presente; numa síntese do espírito...
A luz da minha cozinha ganha mais sentido quando me disponho a vê-la, especialmente nos dias em que custa a desligar da cama e enfrentar. Enfrentar: que nem aqueles ignorantes fazem aos touros, em pleno estado de civilização avançado, ainda precisando demostrar que o ser humano é o mais forte dos seres animados; que os supera e domina; que tem a estratégia do seu lado, nesse eterno conflito da razão e da emoção. A luz da minha cozinha é como a adrenalina masculina esbarrada nos cornos de um bicho; mas aqui o risco é pouco: não há necessidade de cortar nada para enviar a morte para longe; de transpor seguro; de reduzir a emoção ao mínimo possível para atingir a comoção alheia.
Talvez sejam as janelas a prova dessa instância performática do nosso privado mais profundo; talvez seja a luz a adrenalina que nos manda para cima da besta; seja talvez a força que nos faz falta. O vidro bate na chuva e impede-a de ganhar a luta pela qual ela mesma se debate.
"Só nos podem magoar as pedras".

Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Lembro-me de nas aulas de teoria e projecto dizerem que sem luz não há arquitectura. E por estranho que tivesse sido lidar com essa afirmação, a verdade é que desdobra-la e entendê-la é essencial à percepção do mundo. É a luz como quem nos obriga a levantar para não ceder e contrariar tudo o que em nós desiste. Também tenho um carinho pela luz da manhã e pela coragem que ela transporta quando nos entra de rompante no espaço que habitamos. A ausência dela é como a noite, uma zona de conforto (relutante e estagnada), mas ainda assim também ela como uma casa à qual já se conhece os cantos.

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Vá comenta! Sem medo. Sem receio. Com pré-conceitos, sal e pimenta!

Mensagens populares deste blogue

Pensar mais do que sentir

Tenho saudades de ser pequeno, livre e inocente. Sinto falta da irresponsabilidade de ser cândido e não saber nada sobre nada. Estou nostálgico em relação ao Luís que já existiu, foi, mas que não voltará a ver-se como se viu. Este corpo e alma que agora me compõem são reflexos profundos da minha história. O jeito de sorrir, abraçar e beijar reflectem os sorrisos, abraços e beijos que fui recebendo. Sinto falta do Luís que só sabia dizer mamã e Deus da má'jude . Sinto a ausência das pessoas que partiram e que naquele tempo estavam presentes. Sinto saudade de só gostar da mãe e de mais ninguém. Sinto saudades de sentir mais do que pensar. É um anseio que bate, mas nada resolve, porque apenas cansa a alma. A ausência corrói a alma e o espírito. É nestas alturas que penso que a Saudade e o fado são as maiores dores de alma que consigo ter. Provavelmente, sou mesmo um epicurista. Luís Gonçalves Ferreira

Sem parágrafos

Por momentos  - loucos, é certo - esqueço-me de mim e sou capaz de amar. Amar sem parar, com direito às anulações, sofrimentos e despersonalizações que os amores parecem ter. Por momentos - curtos e fugazes - eu esqueço-me de mim e sou, inteiramente, completamente, antagonicamente teu. Entrego-me, como quem não espera um amor livre. Dou-me como quem sente que as minhas vísceras são as tuas entranhas. Abraço-te como quem encosta os corações, que outrora estavam frios, gelados e nus. Aproveita, meu amor, eu sou teu. Aproveita que estou louco e leva-me contigo, para sempre. Rapta-me o corpo, a mente e o descanso eterno deste insano coração. Corres, contudo, o sério risco de não me levares por inteiro. Prefiro trair o coração que a mente, amar a imagem do que viver intensamente a vida de outrem. Amor, querido e visceral amor, leva-me e mostra-me que existes. Não sei quantas horas tenho para cumprir esta promessa que fiz a mim mesmo. A memória irá voltar e corres risco de já não me acha...