Terá os seus 50 anos e serve cafés numa freguesia onde, desde pequeno, reencontro anjos roxos e carmesim. É ali que começa a Função dos Passos onde os guiões pesados dos martírios seguem o rugir da corneta penitente. A senhora está quase sempre de mau-humor nas duas ou três vezes que a vejo num ano. Não diz boa tarde nem obrigado e também não sorri. Ano passado, por esta altura, continuava mal-humorada, mas um bicho tinha-lhe roubado o cabelo e coberto a careca com um gorro hostil em lã. Felizmente - pensei eu - não lhe tinha levado a má disposição e a vontade de trabalhar. Passou tanto tempo quanto o habitual que nos costuma separar, e a sua testa continua carregada; continua sem sorrir e dizer boa tarde, mas agora tem um cabelo encaracolado bonito e divertido. Devo voltar a encontrá-la mais uma ou outra vez neste ano. Certamente darei bom dia outra e outra vez e outra por outra vez terei silêncio e a cabeça a abanar como resposta. O Caetano canta um poema que diz que debaixo dos caracóis dos teus cabelos há uma história por contar de um mundo tão distante; os poetas são bons nisto das adivinhas. As mesmas palavras mudas mas com ondulações - como a vida que corre rápida mediada por reencontros como este.
Escrito em 23 de fevereiro de 2019
Luís Gonçalves Ferreira
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