A fixação de Felicidade Noivas em Braga é, em boa medida, um regresso. Quando, em 1978, os baús dos mantos, vestidos, coroas, coisas de cabeça, acessórios de mão e o conhecimento de Amarina Castilho se levantaram da Rua D. Gonçalo Pereira, n.º 64, para o Lugar de Cruto, em Cervães, houve um espaço na cidade que ficou por preencher. Muito desse entre-meio foi colmatado com a ajuda da Vitorinha, antiga funcionária da "menina" Amarina. A Vitória, entre o tempo, transformou-se numa das figuras da Braga pitoresca que, no meio dos turistas e das suas selfies, teima em querer desaparecer. Na quaresma e no São João, a sua porta, na Rua D. Gualdim Pais, era a nossa casa em Braga e, ironicamente, é a sua incapacidade que provoca tudo isto.
Em 2017, quando, num Seminário sobre Contemporânea, fiz dos anjinhos o tema de um pequeno estudo, lancei olhar crítico à procura da fábula, do mito e da realidade. Tentei despir-me de mim e envolver num manto ascético científico; obviamente malogrei o desafio. Investigar é, também, aceitar o combustível da paixão. Falei com algumas pessoas que fizeram parte de um processo que se enlaça nas chaves do seu tempo: na anexação das empresas pequenas por empresas maiores; dos negócios familiares vendidos no quente das revoluções; na degradação das atividades artesanais face à rapidez dos tempos; na desvalorização do esforço do detalhe e do brio da perfeição manual; na nova religiosidade inaugurada pelo Concílio Vaticano II; nas querelas entre o popular e do erudito; nas metamorfoses sociais impressas pelo crescimento económico.
Braga é um ponto de chegada e, sobretudo, obra-prima da minha mãe. Recebendo a responsabilidade de gerir um negócio desta especificidade, encontrou sítio para o seu entusiasmo e empreendedorismo. São também sobre isso os negócios que recuperou, as gorduras que quis derreter e as camadas que aceitou deixar continuar. O seu esforço ergueu-se numa concretização rápida e teimosa como sempre nos habitou.
O mais incrível de toda esta história de que sei tão pouco, é que ela é quase sempre sobre mulheres e o matriarcado. Amarina Castilho e a Vitorinha nunca casaram; a minha avó era uma amazona como nunca conheci; a minha mãe tem forças que todos os dias descubro existirem. As mátrias são montes de caruma por onde se destapam janelas de oportunidade; atalhos abertos no espaço dos pequenos poderes serpenteados nas brechas dos grandes impérios. Tudo aconteceu no Minho, onde mulheres herdavam casas e morriam sozinhas, cuidando dos pais e esperando maridos. Minho esse onde há festas ou romarias em quase todas as suas freguesias. Minho que, mesmo não sendo nada, é muita coisa.
Estou em crer que é o nosso passado que nos projeta com ânimo neste projeto que começa no amanhã. A utilidade do velho é “apenas” o do encorajamento para construir novas realidades, necessariamente imaginárias e irreais. O velho é, neste sentido, uma poderosa base pronta para agarrar os alicerces; mas é sobretudo sobre as estruturas que recairá parte substantiva do edificado. O passado é, neste sentido, uma laje em betão armado: isolada é estéril, articulada tem poderes sem fim.
Texto de 24 de novembro de 2018.
Luís Gonçalves Ferreira
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