"O traje ('costume') tem que ser: estável o suficiente para permitir que artistas desenhem determinada roupa como típica de determinadas regiões; e, reconhecido como identidade fidedigna por um grupo. Esta estabilidade é afetada por mudanças políticas, por apropriações de estilos pelas elites ou os grupos elencados nas leis sumptuárias, pelas transformações nos tipos de indumentária ao longo do tempo ou pela importação de tecidos e cortes de roupas por estrangeiros. (...) Os críticos medievais e modernos da moda criticavam a novidade, as alterações rápidas nas formas da indumentária e o excessivo exibicionismo visual, porque acreditavam que estas práticas eram as responsáveis pela dissolução abrupta do corpo político num mundo marcado pela construção da "nação". A moda, naquela perspetiva, equivalia ao pretensioso, contrafeito e perverso. Os críticos da moda voltavam-se contra a força que os dividia; viram na lascívia dos veludos, sedas e brocados a força que rompia a coesão social, porque novas ligações entre o vestuário de diferentes identidades dentro da mesma sociedade dissolviam diferenças de estatuto. O consumo de produtos estrangeiros, diziam esses críticos, assinalavam precisamente perdas de uma nação política que se queria hegemónica."
A moda tem que ver com o tempo presente, com desejo, sedução e vontade de distinção. É por isso que consumimos coisas, porque elas capitalizam o self, a competição e a apologia do excedente do nosso trabalho/sucesso. A representação do passado, por seu turno, é comunicada através do traje. O nacionalismo pretende um corpo político estável, debaixo da mesma jurisdição universal, devidamente sujeita aos alistamentos em exércitos, ao cumprimentos dos deveres fiscais e agrafada ao complexo do jargão do "normal". O culto do inimigo comum - seja o estrangeiro ou o membro da freguesia vizinha - facilita o incremento da ideia de identidades estáveis, porque as mesmas devem ser reconhecidas e respeitadas por todos, funcionando como símbolos. O poder não existe sem ritualização e a roupa faz parte das estratégias de comunicação dos diversos centros de poder que nos condicionam diariamente. O traje tem, por isto, que ver com passado e a ideia de um corpo que, de forma determinada, querida, transformada e performática, nos permite transportar a um tempo memorializado como nosso, mas inacessível. Neste sentido, traje tem que ver com a história, porque é uma interpretação dos registos de memórias. A moda é sobre presente e dinâmicas de competição, mas também sobre economia, política, cultura e sociedade. Fala-nos acerca das estratégias múltiplas de comunicação com o outro que estabelecemos ou, na sua ausência, como um ato político de ruptura e manifesto face ao estabelecido. Portanto, o traje é uma interpretação do passado e a moda uma existência do agora. O traje é passível de ser modificado e, em determinada medida, imitado; a moda não - é sempre mediante o seu contexto e perde-se em si mesma.
A moda responde às perguntas do outro sobre o eu: quem é? qual o seu género e sexo? qual a sua proveniência? qual o seu grupo social? A moda identifica-nos e demonstra, no síndrome do gato com medo, o que queremos ser, os nossos medos e anseios. A roupa esconde, destapa, omite ou revela o que existe. É, neste sentido, o cardápio de inseguranças e forças do corpo cujas coisas adornam e cobrem.
- Margaret F. Rosenthal, Cultures of Clothing in Later Medieval and Early Modern Europe, em Journal of Medieval and Early Modern Studies 39:3, 2019, 465 (tradução nossa).
Luís Gonçalves Ferreira
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