Avançar para o conteúdo principal

Bafo no corpo

No verão, escrevi que as casa da rua do Gualdim deitavam um bafo frio muito agradável; era uma transpiração seca de uma caverna - parecia que um monstro escondido guardava conforto para quem passava. Hoje é quase inverno, a hora muda no fim-de-semana e descobri que as pessoas também fazem vento; as pessoas têm sombra, respiram, espirram, suam e fazem vento quando se aproximam. O vento foi frio e desconfortável, porque é quase-inverno e chove na parte de fora. No verão passado não tinha sentido este vento, porque o vento que a pessoa faz é muito leve e mal se sente; o calor é mais poderoso que a pequenez do vento que a pessoa faz. As casas fazem um frio mais poderoso do que o frio que fazem as pessoas, porque o calor das casas é o vento que as pessoas têm - uma espécie de duelo de quenturas e um diálogo entre os poderes móveis e os estáticos. O vento, as pessoas e as casas são estações ou, pelo menos, aliviam-nos as sensações que delas ficam nos nossos corpos; depois há tufões que levam corpos, casas e estações - é a natureza a bufar nas alvenarias moles como na história dos três porquinhos. Confesso que o bafo do lobo foi sempre a parte da história da qual senti menos medo.

Luís Gonçalves Ferreira

Escrito originalmente no Facebook em 24 de outubro de 2019

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Pensar mais do que sentir

Tenho saudades de ser pequeno, livre e inocente. Sinto falta da irresponsabilidade de ser cândido e não saber nada sobre nada. Estou nostálgico em relação ao Luís que já existiu, foi, mas que não voltará a ver-se como se viu. Este corpo e alma que agora me compõem são reflexos profundos da minha história. O jeito de sorrir, abraçar e beijar reflectem os sorrisos, abraços e beijos que fui recebendo. Sinto falta do Luís que só sabia dizer mamã e Deus da má'jude . Sinto a ausência das pessoas que partiram e que naquele tempo estavam presentes. Sinto saudade de só gostar da mãe e de mais ninguém. Sinto saudades de sentir mais do que pensar. É um anseio que bate, mas nada resolve, porque apenas cansa a alma. A ausência corrói a alma e o espírito. É nestas alturas que penso que a Saudade e o fado são as maiores dores de alma que consigo ter. Provavelmente, sou mesmo um epicurista. Luís Gonçalves Ferreira

Sem parágrafos

Por momentos  - loucos, é certo - esqueço-me de mim e sou capaz de amar. Amar sem parar, com direito às anulações, sofrimentos e despersonalizações que os amores parecem ter. Por momentos - curtos e fugazes - eu esqueço-me de mim e sou, inteiramente, completamente, antagonicamente teu. Entrego-me, como quem não espera um amor livre. Dou-me como quem sente que as minhas vísceras são as tuas entranhas. Abraço-te como quem encosta os corações, que outrora estavam frios, gelados e nus. Aproveita, meu amor, eu sou teu. Aproveita que estou louco e leva-me contigo, para sempre. Rapta-me o corpo, a mente e o descanso eterno deste insano coração. Corres, contudo, o sério risco de não me levares por inteiro. Prefiro trair o coração que a mente, amar a imagem do que viver intensamente a vida de outrem. Amor, querido e visceral amor, leva-me e mostra-me que existes. Não sei quantas horas tenho para cumprir esta promessa que fiz a mim mesmo. A memória irá voltar e corres risco de já não me acha...