Avançar para o conteúdo principal

Ao Cristiano

Comecei este texto inúmeras vezes e risquei outras tantas; não fui capaz de escrever nada sobre o Cristiano e a sua morte, há mais de uma semana. Não sabia do início, mas sabia salteado o seu fim. O meu colega de carteira de três anos de secundário morreu e não há muito mais a dizer para além disto: a morte levou uma das pessoas mais incríveis que alguma vez tive a sorte de conhecer. Sorridente, amigo, confidente e uma estrela - com tudo o que as estrelas têm de maravilhoso, inclusive o final: numa luz fraquinha que se foi despedindo e cujas notícias uma fiel mensageira me ia trazendo. Fomos trocando umas mensagens e, sempre covarde, fui evitando as despedidas a sério. A morte mete-me medo e tendo a ignorá-la. Na Grécia, eu e a Ana falamos muito sobre ela e ele, enquanto todos dormíamos. No pôr-do-sol em Atenas, de cerveja na mão, desejei que o destino fosse trocado. O mesmo queria que tivesse acontecido ao ver o seu sorriso por cima da terra rodeada de círios. 
O meu amigo Cristiano partiu e levou nas suas asas o rosto que falta nesta fotografia. Anos depois, a turma do secundário voltou a reunir-se: os mesmos protagonistas, as mesmas piadas e humores, mas um novo silêncio, que, nas nossas linhas, se foi escrevendo. O lugar do Cristiano estava lá, algures entre nós, por seguro na última secretária do lado da janela. Escrevi-lhe que o seu lugar continua connosco e que esperamos a noite toda por ele. 
O lugar do Cristiano está no colo e no sorriso e no feitio do homem que vi, sentado ao meu lado, no casamento da Flor, entre um colo desenhado nos braços e um coração cheio de amor. Chegamos sempre onde nos esperam, escreveu o Saramago: nós chegamos ao amigo que nos falta e ele desceu de algum sítio para nos fazer a companhia que não conseguimos ver, mas que todos sentimos. A força da amizade do Cris é esta fotografia ter acontecido, porque nenhuma pessoa da turma teria tido capacidade para o fazer acontecer. Obrigado, desculpa e até já.
Até já - do último lugar ao lado da janela.

Luís Gonçalves Ferreira 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Aceitação do Prémio Lusitania História – História de Portugal Academia Portuguesa da História

Senhora Presidente da Academia Portuguesa da História, Professora Doutora Manuela Mendonça,  Senhores Membros do Conselho Académico, Senhoras e Senhores Académicos,  Senhor Dr. António Carlos Carvalho, representante da Lusitania Seguros, S.A., Ilustres Doadores,  Senhoras e Senhores,  Vestidos de Caridade, Vestidos de Fé, Vestidos de Serviço, Vestidos de Pátria.  São vários os nomes que podem ter os vestidos que, ao longo da História, foram oferecidos de ricos para os pobres, dos homens e mulheres para os deuses, dos senhores para os seus criados e criadas, de um país ou reino para o seu povo, do ser que não se é para o que se quer ser. Em todos eles há pedido, necessidade, dádiva, hierarquia e crepúsculo. A minha avó Júlia, costureira de ofício e filha de um armador de caixões, fez durante décadas roupas de “anjinho” que alugava nas festas e romarias do Minho. Miguel Torga, num de “Os Contos da Montanha”, referiu que nem o Coelho nem outro qualquer da aldeia o ...

Quietude

Tenho saudades de quando, no calor do tempo, caminhávamos de mãos dadas. Tenho saudades de sentir que as nossas almas eram uma só e que, mesmo por tornado, o castelo ficaria intacto. Lembro-me de como sorria a olhar para ti. Era genuína a forma de te contemplar. Hoje a ferida está aberta por de mais. Tudo me deixa triste, porque a margem de erro diminuiu de tanto ser usada (e abusada). Hoje são como farpas que entram na pele e ferem ainda mais. Não sei até que ponto isto continua viável. Como se a amizade se pudesse avaliar assim... Está tudo fora do sítio e, eu, quieto, continuo à tua espera. Luís Gonçalves Ferreira

Carta IV

Avó, como estás? Noutro dia, como sempre, fui ver-te ao local onde está a tua fotografia e umas frases iguais a tantas outras. Eram vermelhas, as tuas flores. Estava tudo bonito e arrumado. A tua nova casa, como sempre, estava tão fria. O dia está sempre frio quando te vou visitar lá, já reparaste? Espero que no céu seja tudo mais ameno e menos chuvoso. Tu merecias viver mais tempo, porque eras calma, serena e um porto seguro. Queria voltar a ser menino e ter-te novamente e dar-te tudo o que merecias de mim. Era muito pequeno para perceber como merecias mais carinho... Tenho saudades tuas, avó. Do teu colo. Do teu carinho. Da tua protecção e de quando ias comigo passear, à terça-feira. Fomos dois companheiros muito fortes, não fomos? Deixaste-me de responder... Não te oiço. Mas sinto-te. Sinto muito a tua falta, onde quer que estejas.  Tenho muitas saudades tuas. Muitas mesmo.  Até logo, nos sonhos, avó. É só lá que me consigo encontrar contigo e abraçar-te docemente. Luís...