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Da letra à voz. Do génio ao genial.

A Letra. O Génio.
O Apontamento de Álvaro de Campos:

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?

Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-no especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
Álvaro de Campos, 1929


A voz. Genial.
O Apontamento musicado de Margarida Pinto
:

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada, descuidada.
Caiu, e eu fiz-me em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
E os deuses que há debruçam-se da escada.
Para ver o que a criada fez de mim
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
E os deuses que há debruçam-se da escada
E sorriem à criada
Não se zanguem com ela.
São tolerantes...

A minha alma partiu-se como um vaso vazio
Caíu, partiu-se, caíu
A minha alma partiu-se como um vaso vazio
Caíu, partiu-se, caíu

O que era eu, o que era eu?
Um vaso vazio
O que era eu, o que era eu?

Alastra a escadaria atapetada de estrelas.
Ao fundo um caco brilha entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
E os deuses olham-o por não saber por que ficou ali.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.

O que era eu, o que era eu?
Um vaso vazio
O que era eu, o que era eu?
Ai, o que era eu, o que era eu?
Um vaso vazio
O que era eu, o que era eu?
Margarida Pinto, 2005

Num blogue (que eu gosto e sigo) publicou-se um excerto da letra da música de Margarida Pinto. Sempre amei a música e, principalmente, a letra. Nesse blogue comentaram (em jeito de pergunta-semi-certeza) que a letra era Pessoana. Descobri (aqui) o cruzamento das duas realidades: a do do poeta; a da cantora. Descobri que esta minha paixão tinha que ter alguma explicação racional e lógica. Um amante, como eu, de Pessoa não podia deixar uma pérola destas (dupla, ainda por cima) escapar.

Fernando Pessoa é (ou foi?) dos melhores e mais mágicos poetas portugueses. A mim conquista-me a cada linha, em cada suspiro criativo de um verso conexo.

Prezo as pessoas que não temem ao modernizar, moldar e dar novo ânimo aos grandes bastiões da Cultura portuguesa.

Ser-se português é bom. Mas, sabe melhor sê-lo no seio da originalidade e do bom-gosto.

Sem mais,
Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Bem, já me surpreendeste hoje Luís, nunca na minha pura inocência (lol) eu pensava que esta música da Margarida fosse da autoria de Álvaro de Campos!!
    A junção desta sonoridade alegre e engraçada, assenta mesmo bem nas palavras do grande Pessoa.
    Sim senhor. GOSTEI! =)

    ResponderEliminar
  2. muito bem "postado"
    gostei, forte abraço

    ResponderEliminar
  3. Quando fiz o post, não sabia que tinha sido escrito pelo Fernando Pessoa (que ignorância), pensava apenas que tinha sido escrito para a música. A Margarida Pinto conjugou muito bem o poema e o ritmo da música, está genial.

    Beijinho Luis

    ResponderEliminar

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