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Estória Conjunta

-Essa tua vontade de ser diferente nunca me agradou.

-Eu também não fui feito para te agradar, fui feito para viver. Vivo como sei, como quero, como gosto. Não mudo!

A conversa acabou ali. Acabou, também, aquela palhaçada a que eles ousaram chamar casamento.

Ele e ela nunca souberam lidar com as diferenças. Ela era vegetariana, ele profundamente carnívoro (ate dizia que gostava de "a comer"). Ela gostava de surfistas, ele nunca o foi, nem tão pouco gostava de pranchas e cabelos modelados pelo sal. Ele amava o campo, as vacas e os caracóis, ela odiava galinhas e adorava andar de metro. Ele adora morenas e o exotismo, ela insistia em pintar o cabelo de loiro (bem oxigenado) e viajar para Moscovo, Tóquio ou Londres. Ele adorava o ócio, em grandes espaços, ela gostava de estar em casa. Ela adorava cinema caseiro, ele amava os filmes em tela, em 3D, se possível. Ela adorava sexo violento, ela só queria carinho e um 69 pelo meio. Ele queria ser milionário, ela queria "um amor e uma cabana". Ela era medíocre, pouco excêntrica. Ele era estranho, fazia-a ganhar um ácido na boca, logo a seguir ao beijo. Não tinham, tão pouco, a inteligência de manter uma "paz podre" e de esconder as traições. Até a burrice de aparecer em casa com o perfume da outra ele cometia. Ele era profundamente estúpido. Aliás, como ela dizia, "eu quando casei contigo devia ter o radar da estupidez avariado". Ela, para além de ser também uma parvalhona, era porca.

O positivo de tudo isto é que, durante 14 anos, apenas estragaram um lar. Imaginem o terror que seria se assim não tivesse acontecido: mais duas pessoas (no mínimo) teriam sofrido. 

Não eram consonantes consigo próprios, quanto mais com os outros... Eram puramente incompatíveis. Trataram de se ofuscar. Engaram-se e engataram-se inúmeras vezes, com coisas vãs e triviais. Traíram-se vezes sem conta. Magoaram-se mais do que a consciência conseguia suportar.

A incompreensão apodreceu-os. O casamento ruiu por dentro. Maça viçosa, mas podre. Amor sem prazer, sem fogo. Nunca irão perceber que a culpa é deles, só deles. Não das amantes de um ou dos amantes da outra. Se vivessem nos anos 60 teriam tolerado a violência daquele Matrimónio.

São pessoas como eles que desvirtuam aquilo "que Deus uniu e que o Homem não pode separar". São pessoas como eles que aumentam o descrédito no Amor e no Outro.

Agora, machucados, profundamente feridos, vivem felizes com "os" outros que arranjaram entretanto. Ela nunca mais amou como dantes. Ele nunca mais tolerou alguém como dantes.

Foram feitos um para outro e para aquela merda monumental que era a vida deles.

Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Oh eu gostei deste :P
    Está demais, adorei.
    Continua! Beijinhos*

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  2. Namoro há quase um ano, vou casar dentro de 10 dias, as pessoas acham que é cedo, mas nós sabemos no nosso mais intimo que fomos feitos um para o outro.
    Convivemos todos os dias e jamais nos cansamos desta convivência tão intensa.
    Conhecemos um ao outro de tal forma que sabemos o que irrita, o que magoa, o que faz sorrir um ao outro.
    Eu zango-me, ele apenas sorri. Conversámos e minutos depois está tudo bem. Damos montes de beijinhos, montes de carinhos, o sexo misturado com o amor é a coisa mais fantástica que há.
    Amámo-nos. Respeitamo-nos. Isso é o mais importante.
    E somos felizes! Juntos! :)

    ResponderEliminar
  3. Dizem que os opostos se atraiam... eu até um certo ponto concordo, temos oportunidades de descubrir coisas novas, viver-mos aventuras diferentes.... cada momento é uma descoberta... no entanto são muitas vezes essas diferenças que podem arruinar uma relação!
    Mas viver uma relação onde o casal tem gostos tão semelhantes, na minha opiniao, acho que a relação acaba por se tornar muito monótona...
    Mas nem sempre é assim, até porque acima de tudo está o que sentem um pelo outro, haja ou não diferenças!

    Adorei o texto....:))

    Beijinho

    ResponderEliminar
  4. Quem não sabe aceitar as diferenças do outro, não sabe amar...e digo-o eu, diabética à dois anos que já senti uma atitude diferente de muita gente que, mesmo involuntariamente, me lembra que tenho algo dito incomum. (Incomum não será o melhor termo, visto que cada vez existem mais pessoas com a Diabetes, mas isso é outra conversa).
    14 anos juntos?! Wow, invejo, pelo menos, a paciência desses pobres sujeitos para se aturarem durante tanto tempo. Não tenho muita experiência nesse campo (poois, o máximo de tempo que namorei com alguém foi um ano e 4 meses LOL!), mas se aquilo se chamava amar alguém, amei as qualidades dele, assim como as diferenças, e acredita que eram muitas!

    Traição? Ora logo quem veio ler! Se eram assim tão incompatíveis porque não se deixaram antes? :/ Não percebo essa coisa do comodismo, que faz com que os anos passem e deixa as pessoas exactamente na mesma merda de vida, sem reacção.
    É estranho o facto de uma pessoa se habituar a certas coisas...até a uma relação podre como esta. Sem compreensão, sem desejo, sem respeito, sem excitação, sem alegria.


    Estar com alguém sem prazer faz-nos vazios..

    ResponderEliminar
  5. Uau, que texto fantástico Luís. Eu não sonho nem nunca sonhei com o casamento. Desde pequena que digo "eu não me quero casar!!". Como é obvio, agora sei que não é uma decisão que vai depender só de mim. (Ainda tenho tempo para pensar nisso).

    ResponderEliminar
  6. Descreveste muitíssimo bem o que se passa com muita gente, quer no durante quer no final quando escreves o que escreves.

    É mesmo isso.

    Grande abraço

    ResponderEliminar
  7. Às vezes o amor é ao contrário... E é mesmo! :)

    Sabes de quem me lembrei ao ler esta tua "Estória Conjunta"? Do MEC... (eu e a minha mania das associações livres, he he he) Gostei muito Luís! Cheia de vigor e de força e de seiva. Brutal e sedosa, como a vida é tantas e tantas vezes!

    Obrigado pela partilha!

    Grande abraço

    ResponderEliminar

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Pensar mais do que sentir

Tenho saudades de ser pequeno, livre e inocente. Sinto falta da irresponsabilidade de ser cândido e não saber nada sobre nada. Estou nostálgico em relação ao Luís que já existiu, foi, mas que não voltará a ver-se como se viu. Este corpo e alma que agora me compõem são reflexos profundos da minha história. O jeito de sorrir, abraçar e beijar reflectem os sorrisos, abraços e beijos que fui recebendo. Sinto falta do Luís que só sabia dizer mamã e Deus da má'jude . Sinto a ausência das pessoas que partiram e que naquele tempo estavam presentes. Sinto saudade de só gostar da mãe e de mais ninguém. Sinto saudades de sentir mais do que pensar. É um anseio que bate, mas nada resolve, porque apenas cansa a alma. A ausência corrói a alma e o espírito. É nestas alturas que penso que a Saudade e o fado são as maiores dores de alma que consigo ter. Provavelmente, sou mesmo um epicurista. Luís Gonçalves Ferreira

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Por momentos  - loucos, é certo - esqueço-me de mim e sou capaz de amar. Amar sem parar, com direito às anulações, sofrimentos e despersonalizações que os amores parecem ter. Por momentos - curtos e fugazes - eu esqueço-me de mim e sou, inteiramente, completamente, antagonicamente teu. Entrego-me, como quem não espera um amor livre. Dou-me como quem sente que as minhas vísceras são as tuas entranhas. Abraço-te como quem encosta os corações, que outrora estavam frios, gelados e nus. Aproveita, meu amor, eu sou teu. Aproveita que estou louco e leva-me contigo, para sempre. Rapta-me o corpo, a mente e o descanso eterno deste insano coração. Corres, contudo, o sério risco de não me levares por inteiro. Prefiro trair o coração que a mente, amar a imagem do que viver intensamente a vida de outrem. Amor, querido e visceral amor, leva-me e mostra-me que existes. Não sei quantas horas tenho para cumprir esta promessa que fiz a mim mesmo. A memória irá voltar e corres risco de já não me acha...