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Felizmente

Peguei no lápis, no papel e num resquício de um sonho. Faltava qualquer coisa para o esboço ficar perfeito. Pensei no imaginário, estava guardado na gaveta púrpura do aparador da sala. Fui buscá-lo. Aumentei-me de cor e pintei. Encontrei, entretanto, a lágrima que havia sido embalsamada num momento incerto. Fechei, rapidamente, o saco. Ao lado, estava a felicidade, embrulhada em papel vegetal. Tinha um laço artesanalmente estruturado, feito de fita de azevinho e jasmim. A tremer, desembrulhei a nuvem de papel. A felicidade, essa utopia dos que sobrevivem, rejubilava por uma nova oportunidade. Naquela altura não me recordava do que havia motivado aquela arrumação, tão clara e artificial. Pensei. Chorei. Não resisti a embrulhar tudo, como estava antes. A psique havia definido que não era agora, ali, entre o choro e o pensamento melancólico, que poderia voltar a constituir-me. Aquele sentimento insípido não era um projecto meu. A megalomania, inodora e insossa, fez de mim um pessoa crua e infeliz. O desenho queria-me 'cum grano salis'. O pote azul-ciano, que resolvia aquele dilema, desapareceu. Fiquei desarrumado por dentro. O coração reagia na cabeça. O cérebro pensava no peito. A visão deixou de ver. O tacto deixou de sentir.
Acordei.

Feliz por ainda conseguir acordar de um pesadelo.

Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. As gavetas só deviam de guardar o que existe de mau em nós... Guardavam-se as desilusões numa, as perdas noutra, as saudades noutra, por aí fora... Andávamos com a felicidade no bolso das calças e com o optimismo no bolso do casaco :D Fazia-nos bem não abrir as tais gavetas durante algum tempo, se bem que acho importante nunca as esquecermos. Muito de vez em quando, devíamos das abrir e de recordar o mais negro que reside nesta bagunça chamada vida.

    Ainda bem que ainda consegues acordar de um pesadelo. Ainda bem que não vives com um diariamente. Ainda bem, Luís... :) um beijinho *

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