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1 de Novembro

Talvez este seja dos dias mais tristes do ano, pelo menos para mim. Reviver o local onde um ente querido descansa para a eternidade é muito custoso. Mesmo muito. Principalmente, por ver que as campas estão mortas mas o espírito de quem se venera está vivo, muito vivo, nas nossas saudosistas mentes. É a casa para quem mudaram a pessoa que sempre viveu, aqui, comigo, todo o sempre.

Tudo se amplia com o silêncio das vozes, o frenesim dos passos alheios, o calar das campas, o sacrifício dos crucifixos espelhados nas poças de água, o tempo embrulhado, o calor humano triste, desamparado, calado, a venerar algo morto, enterrado, invisível aos olhos desnudos dos seres humanos que sentem apenas saudade. Sentem. Sentem-no aqui como lá, em Braga como em Lisboa, na Terra como no Céu. É um sofrimento completamente alheio a um diacalendarizado ou a uma dor agendada para sofrer. Os cães uivam, os pássaros chilream e os seres humanos remetem-se ao silêncio da dor. A única campa que tem uma imagem do Cristo em Glória, ressuscitado, renascido para a vida eterna, é a da minha avó. Talvez porque tenha sido sempre essa convicção na vida eterna que tenha amparado o sofrimento da mulher que vi morrer, aos poucos, vão alguns anos revirados no tempo. Não sei se continua dentro do caixão ou se o corpo desapareceu, por acaso da biologia. Sei que, apesar da tristeza que me absolve quando cruzo os portões da casa do seu corpo, ela está viva dentro de mim. Se que, apesar da fatalidade da existência, é, e sempre será, a minha segunda mãe.

É dia de recordação, acima de tudo. É por isso que o Dia de Todos os Santos, feito Dia dos Santos Defuntos por acaso da História, merece um assinalar tão estrondoso como os sinos que tocaram, de quinze em quinze, do alto da igreja. É o dia em que, por Tradição, se revivem os que partiram e se ora pelo descanso eterno. É o dia em que a vejo, sorridente, em frente ao meu rosto, com um retrato que me acompanha o coração para onde quer que ele vá. São os muros de pedra que mais custam a elaborar, mas também os que mais custam a ruir. A nossa relação era sólida como o aço, por isso não há morte que nos rompa.

Sem mais,
Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Daniel Silva - Em primeiro, seja bem aparecido :) Eu disse o contrário Daniel, a campa da minha avó é a única (por ser recente) que tem a imagem do Cristo em Glória, com os apóstolos e Maria aos pés, ladeado de anjos. Sim, eu sei, agora até os Cristos crucificados estão a ser retirados dos centros das igrejas, optando-se por imagens da Ascensão. Abraço :D

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  3. Olá

    "Os cães uivam, os pássaros chilream e os seres humanos remetem-se ao silêncio da dor"

    Penso que isto podia ser epitáfio para todos aqueles que perderam alguém muito querido.

    Perdi a minha mãe, como julgo que sabes, há três anos e meio. Em minhas mãos. Dizes que a única campa que tem Cristo ressuscitado é a da tua avó: de facto nos primeiros tempos a Igreja tinha essas imagens, mas mais tarde pensou-se que as pessoas nao se identificavam com alguém glorioso, que venceu a morte, e por isso decidiram passar a usar a iconografia e imagens de CRisto como Cristo crucificado.

    "A nossa relação era sólida como o aço, por isso não há morte que nos rompa."

    E eu sei do que falo.

    Abraço, Luis

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  4. Daniel Silva (Lobinho) - Ou seja? É que eu estou mesmo convencido que a tendência actual é a da retirada do sacrifício (personificado na imagem de Cristo crucificado) como algo central da devoção Católica. :S Esclarece-me, por favor, porque estas coisas nunca são de mais para se crescer intelectualmente. Obrigado. Abraço, Daniel.

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  5. Estava apenas a explicar que no início Cristo era sempre representado nas igrejas como Cristo ressuscitado, dado que venceu a morte, mas com o passar do tempo isso afastou os cristãos que nao se identificavam com um Jesus triunfante e passaram a colocar a imagem do Cristo crucificado, numa empatia imediata com as dores da vida de cada um que acorre à igreja em petição, meditação, oração, silêncio ou simplesmente busca de um sentido para a vida.

    Nao tenho dados que a coisa se esteja a inverter proprositadamente. O que acontece é que as novas igrejas são todas modernaças, estilosas, muitas com a representação de Cristo ressucitado, sim, mas a maioria dos arquitectos e escultotres ainda fazem Cristo crucificado embora numa nouvelle arte. sao tendencias e sensibilidades de quem cria artisticamente, enquanto que antes era por emanação de identificaçao do sofrimento de Cristo.

    Apagauei a mensgem inicial porque escrevi que a campa da tua avó tinha CRisto crucificdao quando queria dizer exactamente o contrário.

    abraço, bom amigo

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  6. Felizmente para mim esse dia ainda não tem muito significado, e admito que felizmente não passei pela dor de perder alguém dessa maneira, acredito que seja uma dor forte e que embora diminua com o tempo, fica sempre uma marca. É um dia díficil não só para ti, como também para todas as pessoas que passam por isso. Quanto ao teu comentário obrigada pelo que escreves-te e obrigada pela força, talvez comparado com muitos problemas das outras pessoas o meu nem seja nada. " Olha que a fila anda e quando estás virada para o Norte poderá passar algo muito bom pelas tuas costas, não o podes perder. ", acredita que desta vez não vou perder. :) Obrigada mais uma vez.
    Beijo. *

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  7. olá....:)
    tenho andado desaparecida, logo nao tenho comentado nada, mas prometo k assim k tiver tempo cumpro o desafio que me lanças-te...:)
    astuas fotosficaram tao engraçadas...=D


    Beijinhoo..

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  8. Que texto tão bom Luís, nem tenho coragem de comentar uma linha que seja, não tenho capacidade para isso (ainda).
    Tenho de te dizer que não me esqueci de forma nenhuma do teu desafio, mas não tenho tido tempo, prometo que vou fazer um post inteirinho com o desafio :D
    Mais uma vez este blog está maravilhoso, como sempre.
    Beijinhos Luís!

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  9. Passa no meu canto. tenho lá umas coisas :)

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  10. Luís, ao ler este texto relembrei uma conversa absolutamente fantástica que tive contigo enquanto estava no hospital. Ambos falamos sobre o facto de termos perdido as avós e de como isso era doloroso. Lembro-me que te escrevia com as lágrimas nos olhos já.

    Enfim, é das muitas coisas que não conseguimos controlar. Beijinho grande de alguém que te compreende.

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