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Um olhar diferente

Todo o sangue tem a sua história. Corre sem descanso no interior labiríntico do corpo e não perde o rumo nem o sentido, enrubesce de súbito o rosto e empalidece-o fugindo dele, irrompe bruscamente de um rasgão da pele, torna-se capa protectora de uma ferida, encharca campos de batalha e lugares de tortura, transforma-se em rio sobre o asfalto de uma estrada. O sangue nos guia, o sangue nos levanta, com o sangue dormimos e com o sangue despertamos, com o sangue nos perdemos e salvamos, com o sangue vivemos, com o sangue morremos. Torna-se leite e alimenta as crianças ao colo das mães, torna-se lágrima e chora sobre os assassinados, torna-se revolta e levanta um punho fechado e uma arma. O sangue serve-se dos olhos para ver, entender e julgar, serve-se das mãos para o trabalho e para o afago, serve-se dos pés para ir aonde o dever o mandou. O sangue é homem e é mulher, cobre-se de luto ou de festa, põe uma flor na cintura, e quando toma nomes que não são os seus é porque esses nomes pertencem a todos os que são do mesmo sangue. O sangue sabe muito, o sangue sabe o sangue que tem. [...] Há sangues que até quando estão frios queimam. Esses sangues são eternos como a esperança.

O sangue em Chiapas, José Saramago, no seu caderno virtual

Se me disserem que isto não é de génio pedir-vos-ei, desde já, que me escrevam coisa igual sobre tema igual com filosofia e olhar iguais. Se igual for muito, peço-vos parecido. Se semelhante for abuso, rendam-se às evidências, como eu o faço. Alguns consideram José Saramago parecido com algo menor, tão-só pela atitude carregada de negritude, cheia de chamas e labaredas, como mero postulado de infâmia e deselegância. Seres menores, caros leitores, são aqueles que sentem o que ele sente, pensam como ele sente, mas não vêem o que ele vê. Seres menores, caros leitores, são todos os que, perante um professor, lhe negam os ouvidos e lhe rejeitam a boca. Seres menores, caros leitores, são todos os pseudo-intelectuais que odeiam a figura pública de Saramago e o criticam sem o ler. Não endeusemos os Homens, respeitemos-los somente. O que basicamente, pela escrita, Saramago nos obriga a pensar é só isto: Somos pequenos animais.

Até à próxima,
Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Saramago aterroriza(-nos) pela crueldade da sua lucidez. De que temos medo, como tememos tudo o que é cruamente real.
    É um génio.

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  2. Só nao concebo (e nao sou unico) que Saramago sendo o génio literario que é, confunda baixeza com realismo. Fale das pessoas como quem atira pedras, e transborda arrogância pelos poros.

    E nao me refiro ao caim que foi um dislate porque se trocou todo ao confundir Antigo Testamento e personagens simbolicas com Novo Testamento, onde ate o insuspeito Miguel Sousa tavares disse "O que le fez nao é um excercicio sério".

    refiro-me ao que disse de Portugal quando se exilou em Lanzarote e agora quer tentar dizer que adora o país.

    Genio o escritor: podridão, o homem...

    ResponderEliminar
  3. Daniel Silva (Lobinho) - Só acha Caim um livro mau quem nunca o leu ou quem não o interpretou devidamente. É preciso ter-se a capacidade intelectual de tolerar e respeitar a opinião dos outros. O que ele diz é cruel, nú, mas é verdade. E as verdades nunca foram fáceis de ouvir. Nem hoje nem nunca. Nem nunca o serão. Nunca me ofendeu, sendo eu católico. É um homem com a sua crença, legítima, que foi brejeira num ou noutro momento. Eu não o acho baixo, mas se provavelmente alto de mais para ser percebido. Só quando se compreende se respeita.

    Um abraço.

    ResponderEliminar
  4. Eu disse que nao me referia ao Caim. Ninguém lhe tira o valor literario, incluindo obviamente Caim. Eu nao falava da obra mas da pessoa. Quem sou eu para impor o meu unico ponto de vista. ja dele nao direi o mesmo ;)

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