Avançar para o conteúdo principal

Espartilhos, Corpetes e Crinolinas

Durante a minha vida vivi com corpetes justos, espartilhos apertados e crinolinas pesadas. Oram mudavam os formatos, ora as cores, ora as cordas: finas ou mais espessas; largas ou mais justas. Incomodativas, sempre foram, essas fartas locomotivas. É a existência numa asfixia de moldes, frutos de tempo e espaços próprios. As pessoas correm, a olhos vistos, em todas estas justuras que sufocam a beleza de se viver livremente. Não são paredes de tijolos, mas feituras humanas, medíocres, das cabeças, que viram práticas-produto. Luís XIV usava saltos altos. Confortáveis não eram por certo. Certo será que as crinolinas, os corpetes e os espartilhos, das damas da sua corte, também não o eram. 
Todos vivem (e não sou só eu) com adereços sociais inúteis, desconfortáveis, que não são de cimento, nem de barro nem de pano nem de madeira nem de arcos nem de varetas. Nem de nada que se possa descrever em linhas de homens.
As coisas que espartilham, encorpetam ou crinam a vida não são as óbvias coisas que o vosso e o meu imaginário arquitectam para esta valsa de adereços de moda. Falo, aqui, de moldes, modelos, tigeladas de barro que nos metem, desde pequenos, pelo cérebro dentro. São preconceitos, arquétipos, brocardos. São moldes. E mais moldes. E mais cimento e barro.
"Olha que ficas como o teu tio." 
"A tua irmã é mais inteligente que tu". 
"Se não fizeres isto arrependeste". 
"És um mau filho". 
"És má pessoa". 
"És mau namorado". 
"És inferior à pessoa X, mas superior a Y". 
"És". 
"És".
"X é e tu não és".
É a sobranceria do ser, pelos outros. Somos comandos, postas fixas de carne, em desejo de prazer e de felicidade, meramente sujeitas às prestações dos outros. São moldes. Como as tigelas que nos dão o caurdo da ceia. Feitas e refeitas vezes sem conta, na mesma esquemática ignorância de não se pensar que se empobrece o outro assim. Modelos. Chuvas de comparações. Premissas. Prestações. E modelos. Sempre me senti emparedado nos outros, mesmo entre pessoas que nem conheci. E isso desagrada-me. Sempre me destabilizou, mas não tinha voz para refilar nem dizer nada. Aceitei. Fui chamado de "burro". Cresci. E repulso comparações.
Repulsa. Nojo. É isso.
E cresci. E vejo o Homem como um ser, primariamente isolado, sem roupa, nem apetrecho nem ancas nem vestidos nem crinolinas nem espartilhos. Topo-lhe humanidade. Dou-lhe respeito. Não o comparo. É um ser. Precisa de crescer. É particular. Nada de paredes. Nem muros. Nem bem nem mal. Nem ocidente nem oriente. Cansei-me de formas. Fadiga egoísta. Logo depois, enformo (os outros) num bolo, fruto da observação. Não comparo nem subestimo. Conheço.
Afinal de contas, Deus criou o homem e a mulher nus e eles tocaram-se, corporalmente, e tiveram prazer. Viram o outro. Não existiam espartilhos nem corpetes nem crinolinas antes de serem verdadeiramente conhecedores de si. Era correcto o silogismo se eles não fossem logo emparedados entre as pernas do Deus do Bem e as coxas do Deus do Mal. Era lógico o pensamento até serem vestidos, de moldes, que eram folhas de preconceito. 
Modelos. 
E mais modelos. 
Paredes e muros destrutíveis.
Eu próprio sujeito-me à sujeição dos outros aos meus moldes.
Por respeito à minha história, não me comparem. Estimem o que sou e não o que querem que seja. Mimem o que está cá, se for isso que o coração pede. Deixem-me ser, livremente, sem Espartilhos, Corpetes e Crinolinas.


Sem mais,
Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Não vou estar aqui com rodeios e mais rodeios, a mensagem que transmites é bem explicita a meu ver. Simplesmente não devemos mudar a nossa personalide / atitudes só porque os que nos rodeiam querem, se eles quiserem é que se tem de moldar ao nosso modo de vida e lidar com ele, mas isso só se eles quiserem fazer mesmo parte da nossa vida. Como se custuma dizer quem gosta gosta , quem não gosta paciência .

    Beijinho *

    ResponderEliminar
  2. Luis (:

    É muito bom ter-te de "volta" ainda mais com esse pensamento com o qual hoje acordas-te. Não é facil te-lo mas quando o temos faz-nos imenso bem a nós mesmos e a quem está perto de nós.
    Gostava de ter um poder mágico ou qqr coisa assim sobrenatural e fazer com que todas as pessoas se lembrassem pelo menos do como seriam capazes, se quisessem, de mudar o mundo. Ou pelo menos o mundo de alguém.
    Basta querer e deixar-mos de olhar só para o nosso umbigo. Sentiriamo-nos bem melhores e a sociedade seria muito mais feliz (que é o que tanto falta hoje em dia).

    Um grande, grande beijinho (:

    ResponderEliminar
  3. É um facto, todos nós fazemos sacrifícios para ser parte de uma sociedade não merecedora, grande parte das vezes.
    Também já tinha saudades de ti lá no meu cantinho, e eu de vir aqui também.
    Beijinhos Luís! :)

    ResponderEliminar
  4. "Não comparo nem subestimo. Conheço".

    Luis, esse texto é simplesmente perfeito! Perfeito pra mim, e por tudo que penso a respeito desse "molde" que nos enfiam desde muito cedo. Eu já sofri muito com isso, sei exatamente o que quer dizer cada uma dessas suas palavras. Conhecer é o passo! Pensar faz sofrer, é dolorido e dá trabalho, geralmete, as pessoas apenas concordam. Ah, meu caro, eu teria um prazer enorme de sentar e conversar com você por horas. Por alguma vezes, conversamos via msn sobre esse seu tema de hoje, e me senti incrivelmente bem. Temos que fazer mais isso, heim!? Permita-me usar seu texto em uma das minhas aulas? Eu adoraria levar isso à debate.

    Um beijo enormeeeeeeeeeeeeeee! Você expressa em palavras toda a sua opinião infinitamente dolorida, mas, verdadeiramente intensa. Nos faz pensar... E isso, é muito bom!

    ResponderEliminar
  5. Jacque - Quanta honra! Claro que podes usar o texto. Escrevo as coisas para serem lidas, desde se usadas sejam colocados os devidos créditos autorais. Podias era filmar essa aula e mandar-me o vídeo para eu ver os teus pupilos a discutirem a temática lançada pelo meu texto. Acho que nunca fizeram nada do género com um texto meu, e seria, verdadeiramente, um orgulho. Beijão grande, minha amiga. E sim, as nossas conversas têm que se multiplicar, porque são óptimas. :)

    ResponderEliminar
  6. Simplesmente o teu melhor texto! Adoro a forma como crias a alegoria entre a realidade que se vive com a moda, neste caso, oitocentista. Não há que parecer bem, há que ser bem, e todos nós temos devaneios, sem isso, não eramos seres vivos :)

    ResponderEliminar
  7. Olá, fiquei sem palavras escreves como um "senhor"... Parabéns!

    Vi o que disseste dos direitos de autor, gostei tanto do texto que postei no meu fórum com devida fonte claro, sem querer fazer publicidade ao fórum, enviarei-te o link por mail, para confirmares.

    Abraço DavidM, continua a escrever, escreves muito bem mesmo!

    ResponderEliminar
  8. adorei conher as crinolinas gostaria de ter vivido nesta epoca...

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Vá comenta! Sem medo. Sem receio. Com pré-conceitos, sal e pimenta!

Mensagens populares deste blogue

Repondo a verdade

Depois de inúmeras tentativas (que agradeço), passo a devolver o dente ao leão, a identificar aquilo que é verdade ou mentira: 1. Adoro manteiga de amendoim Verdade. Quem convive comigo (ou quem me ouve falar) sabe desta paixão. Em pequeno ia para a casa da minha tia e comia pacotes dela. Hoje, depois do sofrimento para emagrecer, contenho-me no consumo. Mas a paixão existe, ai se existe... 2. Compro todas as edições da “Super Interessante” Verdade. Compro-as todas (pelo menos de há dois anos para cá) sem falhar um número. Fascina-me a forma despreocupada, límpida e inteligente que pautam os artigos da revista. 3. Já apareci no programa da Fátima Lopes vestido de anjinho Verdade. A minha mãe foi ao programa SIC 10 Horas demonstrar ao país o seu ofício (vestir anjinhos) e eu, filho devoto e cumpridor, pousei como Jesus Cristo (com cabeleira e tudo). Vergonha. Foi o que me restou do acontecimento. :) 4. Leio a Bíblia constantemente e o meu Evangelho favorito é o de Mateus ...

Aceitação do Prémio Lusitania História – História de Portugal Academia Portuguesa da História

Senhora Presidente da Academia Portuguesa da História, Professora Doutora Manuela Mendonça,  Senhores Membros do Conselho Académico, Senhoras e Senhores Académicos,  Senhor Dr. António Carlos Carvalho, representante da Lusitania Seguros, S.A., Ilustres Doadores,  Senhoras e Senhores,  Vestidos de Caridade, Vestidos de Fé, Vestidos de Serviço, Vestidos de Pátria.  São vários os nomes que podem ter os vestidos que, ao longo da História, foram oferecidos de ricos para os pobres, dos homens e mulheres para os deuses, dos senhores para os seus criados e criadas, de um país ou reino para o seu povo, do ser que não se é para o que se quer ser. Em todos eles há pedido, necessidade, dádiva, hierarquia e crepúsculo. A minha avó Júlia, costureira de ofício e filha de um armador de caixões, fez durante décadas roupas de “anjinho” que alugava nas festas e romarias do Minho. Miguel Torga, num de “Os Contos da Montanha”, referiu que nem o Coelho nem outro qualquer da aldeia o ...

Carta IV

Avó, como estás? Noutro dia, como sempre, fui ver-te ao local onde está a tua fotografia e umas frases iguais a tantas outras. Eram vermelhas, as tuas flores. Estava tudo bonito e arrumado. A tua nova casa, como sempre, estava tão fria. O dia está sempre frio quando te vou visitar lá, já reparaste? Espero que no céu seja tudo mais ameno e menos chuvoso. Tu merecias viver mais tempo, porque eras calma, serena e um porto seguro. Queria voltar a ser menino e ter-te novamente e dar-te tudo o que merecias de mim. Era muito pequeno para perceber como merecias mais carinho... Tenho saudades tuas, avó. Do teu colo. Do teu carinho. Da tua protecção e de quando ias comigo passear, à terça-feira. Fomos dois companheiros muito fortes, não fomos? Deixaste-me de responder... Não te oiço. Mas sinto-te. Sinto muito a tua falta, onde quer que estejas.  Tenho muitas saudades tuas. Muitas mesmo.  Até logo, nos sonhos, avó. É só lá que me consigo encontrar contigo e abraçar-te docemente. Luís...