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Vou partir... nesse barco

São como farpas, leves, breves,
Aladas. Encantadas.
Raspam. E moem.
E mastigam como de um corvo preto se aproveitasse.
E mantivesse uma dor, 
Pérpetua (e profunda), 
Que escava, por dentro,
Com a frieza de quem já não sente,
Ou talvez sinta... Mas já nem se cative,
Porque mata e lapida o que de bom
Mais abundava.

É o Império do passado.
Do infinitivo de um verbo
E de um tempo que foi.
Destilou-se em águas bravas
E rochas pálidas de uma natureza qualquer.
Caminhou, com conchas negras às costas, 
Num peregrinação sem rumo,
O fundo era pano erguido e jamais descido.
São estórias feitas da História dos tempos
E das gentes. E de tudo o que mais grita, 
Entre as pernas de um povo.
Malfadado fado.
Negro destino.
Pobre e podre fardo de um corpo por demais cansado.
E farto. 
São memórias. Rasgadas em fios panos. 
Do tal fim que não há e foi erguido e jamais descido.

Resta uma torpe língua.
E defeituosos sentimentos de raspados batimentos
De uma febril carne que mora,
Dentro, perto do ar, 
Ao pé do canto do peito profundo. 
É o coração a torpe. 
É o coração o pano.
É o coração o barco que não vem.
E é a razão o que destila o tempo.
E o vento.
O nosso vento.
O nosso tempo. 
Do espaço que se abriu entre os nossos corpos
Para nunca mais nos aproximar.

Vou partir. Nesse barco.
 
Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Pois parte. Mas não nesse barco. É um barco feito de uma beleza incomensuravel de palavras,como tão bem sempre ilustras e ocnsegues, mas onde a dor te pode rasgar o ser...

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  2. Invejo o teu jeito para a escrita. Seja prosa ou poesia, consegues sempre surpreender-me...

    ResponderEliminar

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