Avançar para o conteúdo principal

Diário de Viagem: Instância terceira - uma filosofice

Tenerife, 20 de Setembro de 2010
É, finalmente, o dia da partida. Não é que importe o sítio para onde se vem, não é que obrigue o coração a pedir mais, mas é, por certo, aquilo que a alma solicita: o regresso onde fomos felizes e onde nos sentimos confortáveis. Espanha é fria de mais. Nem por ser este o arquipélago onde Saramago escolheu viver que as coisas são diferentes. Tenerife é praia escura, mar revolto e uns hotéis de artifício, eficientes, europeus por demais. É assim as férias dadas ao luxo e ao conforto humanos. E não era nada disto que eu vim escrever. Ia-vos dizer, caros amigos, que tenho pena de não ter escrito mais durante as férias. Só me lembrei do computador, a bom paleio verdadeiro, há uns dois dias atrás, embora a vontade de me lançar sobre as linhas tenha aparecido antes, quando a caneta pedia, entre os dedos, umas linhas mais fartas que uma firma e um número de quarto. Foi pena. Mais sobrará para o que ainda vem e o que ainda resta. Para o solo que irei pisar, daqui a umas horas, completamente luso e de sangue estranhamente saudosista. Sinto falta de Portugal. E precisava escrevê-lo, aqui e agora.

A cascata artificial, fria, faz barulho, ali ao fundo. Oiço gente de todas as línguas como pano de fundo. Tenerife é isto: um luxo artificial em jeito de esperanto. Aqui ao lado, na costa, paira a África Negra, feito de Senegal e outros demais negrismos que chamam a isto tudo de futilidade. Não que me tenha ocorrido, assim de repente, uma Floribella à cabeça, mas também penso nesse tipo de mundialidades e discrepâncias térreas. Não temos nada mais que ele, em termos substanciais à Humanidade que possuímos em igual peso e medida. Temos a mais de artificial. Como a cascata que plantaram, lá longe, no meio do hotel para ficar belo. A beleza é um artificio, na verdade. Artificial é, reparemos, tudo aquilo que se inventa para nos dar conforto e distanciar dos outros. Aliás, o conforto é artificial. Artificial é o acessório, o secundário e o relativo. É tudo artificial. A língua que nos popula as bocas, e nos torna diferentes por remédio sólido, é artifício. Não acredito que alguém concordo com estas linhas escrita à pressão nem que tomem isto como algo fulcral. Mas saiu e cresceu de dentro de mim. É artificio, também. 

Há cadeiras. Que são postiças coisas. Há água doce, metida em tanque, que nem ferve nem anda como na sua natural situação. É postiça, portanto. Há gente, vestida, cheia de coisas acessórias. São postiças, deduzo já. E cartas. E carteiras. E um computador. E uma bateria que vai findar, se não vos termino isto a tempo de ir almoçar.
Estou quase a partir. E isso, bem vistas as coisas, artificial ou não que seja, consegue-me agradar profundamente. 

Sem mais,
Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Podem ter sido poucos dias, mas pelo teu relato das férias parece-me que foram muito boas . Depois de muito trabalho bem merecias umas boas férias em que podesses apreciar a beleza da natureza .

    Beijinho *

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Vá comenta! Sem medo. Sem receio. Com pré-conceitos, sal e pimenta!

Mensagens populares deste blogue

Repondo a verdade

Depois de inúmeras tentativas (que agradeço), passo a devolver o dente ao leão, a identificar aquilo que é verdade ou mentira: 1. Adoro manteiga de amendoim Verdade. Quem convive comigo (ou quem me ouve falar) sabe desta paixão. Em pequeno ia para a casa da minha tia e comia pacotes dela. Hoje, depois do sofrimento para emagrecer, contenho-me no consumo. Mas a paixão existe, ai se existe... 2. Compro todas as edições da “Super Interessante” Verdade. Compro-as todas (pelo menos de há dois anos para cá) sem falhar um número. Fascina-me a forma despreocupada, límpida e inteligente que pautam os artigos da revista. 3. Já apareci no programa da Fátima Lopes vestido de anjinho Verdade. A minha mãe foi ao programa SIC 10 Horas demonstrar ao país o seu ofício (vestir anjinhos) e eu, filho devoto e cumpridor, pousei como Jesus Cristo (com cabeleira e tudo). Vergonha. Foi o que me restou do acontecimento. :) 4. Leio a Bíblia constantemente e o meu Evangelho favorito é o de Mateus ...

Aceitação do Prémio Lusitania História – História de Portugal Academia Portuguesa da História

Senhora Presidente da Academia Portuguesa da História, Professora Doutora Manuela Mendonça,  Senhores Membros do Conselho Académico, Senhoras e Senhores Académicos,  Senhor Dr. António Carlos Carvalho, representante da Lusitania Seguros, S.A., Ilustres Doadores,  Senhoras e Senhores,  Vestidos de Caridade, Vestidos de Fé, Vestidos de Serviço, Vestidos de Pátria.  São vários os nomes que podem ter os vestidos que, ao longo da História, foram oferecidos de ricos para os pobres, dos homens e mulheres para os deuses, dos senhores para os seus criados e criadas, de um país ou reino para o seu povo, do ser que não se é para o que se quer ser. Em todos eles há pedido, necessidade, dádiva, hierarquia e crepúsculo. A minha avó Júlia, costureira de ofício e filha de um armador de caixões, fez durante décadas roupas de “anjinho” que alugava nas festas e romarias do Minho. Miguel Torga, num de “Os Contos da Montanha”, referiu que nem o Coelho nem outro qualquer da aldeia o ...

Carta IV

Avó, como estás? Noutro dia, como sempre, fui ver-te ao local onde está a tua fotografia e umas frases iguais a tantas outras. Eram vermelhas, as tuas flores. Estava tudo bonito e arrumado. A tua nova casa, como sempre, estava tão fria. O dia está sempre frio quando te vou visitar lá, já reparaste? Espero que no céu seja tudo mais ameno e menos chuvoso. Tu merecias viver mais tempo, porque eras calma, serena e um porto seguro. Queria voltar a ser menino e ter-te novamente e dar-te tudo o que merecias de mim. Era muito pequeno para perceber como merecias mais carinho... Tenho saudades tuas, avó. Do teu colo. Do teu carinho. Da tua protecção e de quando ias comigo passear, à terça-feira. Fomos dois companheiros muito fortes, não fomos? Deixaste-me de responder... Não te oiço. Mas sinto-te. Sinto muito a tua falta, onde quer que estejas.  Tenho muitas saudades tuas. Muitas mesmo.  Até logo, nos sonhos, avó. É só lá que me consigo encontrar contigo e abraçar-te docemente. Luís...