Avançar para o conteúdo principal

Doença dos olhos

Quem se apaixona está profundamente doente dos olhos, como diria o poeta. Vê tudo com o coração. Apaixona-se pelo coração. Desilude-se com o coração. O degradé do amor é isso mesmo: uma imensidão de cores, em caminhos, que vão (quase) todas dar ao lado oposto, mas vizinho, porque tudo se passa em círculos. A fronteira entre o amor profundo e a repulsa é ténue, saberá quem já se apaixonou. O mesmo acontece com aqueles que querem guardar o melhor dos outros em si e que lhe prometem curar a "doença dos olhos" mantendo o coração a ver. O coração e o olhos vêem, tantas vezes, coisas incompatíveis entre si, como dois direitos que chocam num qualquer exemplo de Direito. Quando paramos para dirimir a questão e dar palco ora uns ora o palco aos outros, verificamos que o palco é singular, canta a uma voz, e não é mais o do que uma surdina repercussão do mesmo em bocas diferentes. Amar pressupõe dádiva, verdade e confiança. Coisas que são cegas, mais das vezes. No mundo real, aquele do monocromado entre o preto e o branco (essa dicotomia das doidas não-cores), a oscilação entre a razão e a paixão faz-nos cair na melancolia das horas. Sejam elas tempos de verão ou de inverno. Nessa distância entre o clique que te dá no momento da ilusão e o clique que te dá no momento da desilusão, vives intensamente um corre-corre entre a tua própria ambivalência e imanência de sentir em duas frentes. Nos sentidos do tramado circo que é o cérebro, vais sentindo uma variedade louca de cores: e é esse o teatro dramático de ti. Umas cores mais verdadeiras que outras. Umas cores mais bonitas que outras. Mas serão sempre cores: um pesado nome que lhe estamparam na testa. O amor é um nome. As cores também o são. O cérebro e o coração e o que tudo significa não passam disso mesmo: rótulos de ti. Há quem conviva com rótulos e lhes dê razão na mentira da emoção. Há quem não ligue à emoção e sobreviva na razão. E há quem não saiba nada de nada, cresça a aprender e reconheça a vida como um caminho ambivalente, cheio de novos conceitos, de perdas e de desilusões. Eu sou um exemplo do terceiro género. E vivo feliz assim: nesta preparação para a felicidade plena que reconheço jamais conseguir alcançar por me recusar a viver mentiras.

Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Que estrondo de texto Luis, estas tuas palavras encantaram-me completamente e concordo com a mensagem que acabas por transmitir com elas .

    Beijinho *

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Vá comenta! Sem medo. Sem receio. Com pré-conceitos, sal e pimenta!

Mensagens populares deste blogue

Aceitação do Prémio Lusitania História – História de Portugal Academia Portuguesa da História

Senhora Presidente da Academia Portuguesa da História, Professora Doutora Manuela Mendonça,  Senhores Membros do Conselho Académico, Senhoras e Senhores Académicos,  Senhor Dr. António Carlos Carvalho, representante da Lusitania Seguros, S.A., Ilustres Doadores,  Senhoras e Senhores,  Vestidos de Caridade, Vestidos de Fé, Vestidos de Serviço, Vestidos de Pátria.  São vários os nomes que podem ter os vestidos que, ao longo da História, foram oferecidos de ricos para os pobres, dos homens e mulheres para os deuses, dos senhores para os seus criados e criadas, de um país ou reino para o seu povo, do ser que não se é para o que se quer ser. Em todos eles há pedido, necessidade, dádiva, hierarquia e crepúsculo. A minha avó Júlia, costureira de ofício e filha de um armador de caixões, fez durante décadas roupas de “anjinho” que alugava nas festas e romarias do Minho. Miguel Torga, num de “Os Contos da Montanha”, referiu que nem o Coelho nem outro qualquer da aldeia o ...

Quietude

Tenho saudades de quando, no calor do tempo, caminhávamos de mãos dadas. Tenho saudades de sentir que as nossas almas eram uma só e que, mesmo por tornado, o castelo ficaria intacto. Lembro-me de como sorria a olhar para ti. Era genuína a forma de te contemplar. Hoje a ferida está aberta por de mais. Tudo me deixa triste, porque a margem de erro diminuiu de tanto ser usada (e abusada). Hoje são como farpas que entram na pele e ferem ainda mais. Não sei até que ponto isto continua viável. Como se a amizade se pudesse avaliar assim... Está tudo fora do sítio e, eu, quieto, continuo à tua espera. Luís Gonçalves Ferreira

Carta IV

Avó, como estás? Noutro dia, como sempre, fui ver-te ao local onde está a tua fotografia e umas frases iguais a tantas outras. Eram vermelhas, as tuas flores. Estava tudo bonito e arrumado. A tua nova casa, como sempre, estava tão fria. O dia está sempre frio quando te vou visitar lá, já reparaste? Espero que no céu seja tudo mais ameno e menos chuvoso. Tu merecias viver mais tempo, porque eras calma, serena e um porto seguro. Queria voltar a ser menino e ter-te novamente e dar-te tudo o que merecias de mim. Era muito pequeno para perceber como merecias mais carinho... Tenho saudades tuas, avó. Do teu colo. Do teu carinho. Da tua protecção e de quando ias comigo passear, à terça-feira. Fomos dois companheiros muito fortes, não fomos? Deixaste-me de responder... Não te oiço. Mas sinto-te. Sinto muito a tua falta, onde quer que estejas.  Tenho muitas saudades tuas. Muitas mesmo.  Até logo, nos sonhos, avó. É só lá que me consigo encontrar contigo e abraçar-te docemente. Luís...