Avançar para o conteúdo principal

Da doença dos olhos: uma ficção continuada

Quando se ama alguém de forma não correspondida por muito tempo, o nosso corpo habitua-se ao pouco que é um amor que não conhece um espelho: uma doença dos olhos, uma loucura que vê em todas as folhas que mexem um terramoto. É uma sinestesia estranha entre aquilo que algum dia se teve e aquilo que efectivamente se possui. É isso uma doença da realidade, como uma ficção de sentimentos: um teatro continuado por pura necessidade de sobrevivência. 
Há-de chegar o tempo em que o ridículo do pouco que se recebeu relevará e fará pensar. Valeu a pena? Onde está, agora, a pessoa a quem lhe devotamos o maior amor que conseguimos canalizar? É um processo seguido de múltiplas réplicas. As réplicas são traumas e formas de operar. São como modelos tortos, doentes, repetidos até curar a ferida. Não existe maior injustiça advinda de nós mesmos senão aquela de amar alguém que já partiu: uma perpétua devoção ao molde daquilo que foi mais dado que recebido. A minha maior réplica é a de querer dar amor de uma só vez: como quem quer dominar os mares na primeira maré. 
Dos fracos a História nem caso faz, daí é a junção dos cacos e a continuidade que importam sempre. É uma luz eterna, feita da nossa fidelidade ao sentimento de dever cumprido.  
Arrependimento sempre do que se terá feito e nunca do que ficou por fazer.  
Fidelidade à necessidade de nunca deixar nada por dizer, nada por fazer.
Pessoas ensinaram-me isto na vida: a minha avó é a maior força que tenho, sobrevivendo como uma estrela. Estes últimos meses ditam uma enorme abertura às verdades dos outros, que tinha como inúteis perante o meu dogmatismo. Estou mais rico, mais forte e mais consciente de mim. Gostava de ter a força destas linhas amanhã. E depois. E depois.

Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Vais ter esta força de hoje, amanhã e sempre carregada em teu coração.
    Porque és forte, muito forte. Pensa sempre nisto: "nada, nem ninguém é mais capaz que eu", porque afinal és tu que dás vida aos teus dias, está em ti a capacidade de ir em diante. E eu sei que vais!

    Um enorme beijinho aqui da Francisca, com o desejo de um bom resto de domingo.

    ResponderEliminar
  2. "Quando se ama alguém de forma não correspondida por muito tempo, o nosso corpo habitua-se ao pouco que é um amor que não conhece um espelho" -> É tão verdade... Sempre me deixas sem palavras, mas este post, está de certa forma bem especial, gostei muito..:D
    E força, tu tens essas força, tens que a encontrar dentro de ti e ela está bem lá...:)

    Beijinho grande*

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Vá comenta! Sem medo. Sem receio. Com pré-conceitos, sal e pimenta!

Mensagens populares deste blogue

Repondo a verdade

Depois de inúmeras tentativas (que agradeço), passo a devolver o dente ao leão, a identificar aquilo que é verdade ou mentira: 1. Adoro manteiga de amendoim Verdade. Quem convive comigo (ou quem me ouve falar) sabe desta paixão. Em pequeno ia para a casa da minha tia e comia pacotes dela. Hoje, depois do sofrimento para emagrecer, contenho-me no consumo. Mas a paixão existe, ai se existe... 2. Compro todas as edições da “Super Interessante” Verdade. Compro-as todas (pelo menos de há dois anos para cá) sem falhar um número. Fascina-me a forma despreocupada, límpida e inteligente que pautam os artigos da revista. 3. Já apareci no programa da Fátima Lopes vestido de anjinho Verdade. A minha mãe foi ao programa SIC 10 Horas demonstrar ao país o seu ofício (vestir anjinhos) e eu, filho devoto e cumpridor, pousei como Jesus Cristo (com cabeleira e tudo). Vergonha. Foi o que me restou do acontecimento. :) 4. Leio a Bíblia constantemente e o meu Evangelho favorito é o de Mateus ...

Aceitação do Prémio Lusitania História – História de Portugal Academia Portuguesa da História

Senhora Presidente da Academia Portuguesa da História, Professora Doutora Manuela Mendonça,  Senhores Membros do Conselho Académico, Senhoras e Senhores Académicos,  Senhor Dr. António Carlos Carvalho, representante da Lusitania Seguros, S.A., Ilustres Doadores,  Senhoras e Senhores,  Vestidos de Caridade, Vestidos de Fé, Vestidos de Serviço, Vestidos de Pátria.  São vários os nomes que podem ter os vestidos que, ao longo da História, foram oferecidos de ricos para os pobres, dos homens e mulheres para os deuses, dos senhores para os seus criados e criadas, de um país ou reino para o seu povo, do ser que não se é para o que se quer ser. Em todos eles há pedido, necessidade, dádiva, hierarquia e crepúsculo. A minha avó Júlia, costureira de ofício e filha de um armador de caixões, fez durante décadas roupas de “anjinho” que alugava nas festas e romarias do Minho. Miguel Torga, num de “Os Contos da Montanha”, referiu que nem o Coelho nem outro qualquer da aldeia o ...

Carta IV

Avó, como estás? Noutro dia, como sempre, fui ver-te ao local onde está a tua fotografia e umas frases iguais a tantas outras. Eram vermelhas, as tuas flores. Estava tudo bonito e arrumado. A tua nova casa, como sempre, estava tão fria. O dia está sempre frio quando te vou visitar lá, já reparaste? Espero que no céu seja tudo mais ameno e menos chuvoso. Tu merecias viver mais tempo, porque eras calma, serena e um porto seguro. Queria voltar a ser menino e ter-te novamente e dar-te tudo o que merecias de mim. Era muito pequeno para perceber como merecias mais carinho... Tenho saudades tuas, avó. Do teu colo. Do teu carinho. Da tua protecção e de quando ias comigo passear, à terça-feira. Fomos dois companheiros muito fortes, não fomos? Deixaste-me de responder... Não te oiço. Mas sinto-te. Sinto muito a tua falta, onde quer que estejas.  Tenho muitas saudades tuas. Muitas mesmo.  Até logo, nos sonhos, avó. É só lá que me consigo encontrar contigo e abraçar-te docemente. Luís...