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Amor 'ad aeternum'

Eu perdi a minha avó com 60 e achei que é-se cedo de mais. É-se sempre cedo de mais. Mesmo nas coisas básicas que terminam, todos os dias. É-se assim especialmente quando a pessoa te ensina imensas coisas, a todos os segundos. Mas perceber que esse legado do ensinamento não termina ali, com a morte do corpo, deixa-te confortável e faz-te habituar ao reajuste dos espaços que a dimensão das memórias precisa. Nunca passa. Pelos menos não passou até agora. 

Sinto imensa falta dela, todos os dias. Do cheiro, do toque, dos passeios, e menos-grave relação física que tínhamos. Não me lembro de ser muito físico, pelo menos nos afectos. Aprendi a ler olhares, a interpretar carícias, mesmo que vinda como farpas, na primeira impressão do ego. Crescer sem alguém faz-te saber que as pessoas te fazem falta: do familiar ao amigo que desapareceu. Percebes particularmente isso: que nada desaparece.

Acho que preciso mais dela nas alegrias, quando quero mostrar "Eu consegui!" e dar aquele abraço, mesmo que não existisse no palco do concreto. E faz falta quando cais em ti e percebes que o corpo já não está lá, no sítio que normalmente estava. E o corpo é importante porque tem cheiro e a memória não. Mas tem outras coisas imensas e poderosas. A maior de todas é aquela que não te faz esquecer. Nunca. Jamais. O umbilical condão do amor não o deixa. Nem nunca pode deixar.

A mulher do Miguel Esteves Cardoso, o Miguel Portas, a Maria José Nogueira Pinto, a morte prematura de um pai de uma amiga minha, fizeram-me relembrar da dor de se perder alguém cedo de mais. Existem coisas que não se percebem. O odor da morte de um parente é exemplo disso. Como que por hetero-consolo, na penumbra automática da consciência, amar é eterno. E essa é a maior devoção meta-física que o homem pode profesar. E isso acho ter certeza.

"Mas a dor não diminui. Nem a tristeza abranda. Vai morrer o meu amor. Não vai. Como o meu amor por ela, nunca há-de morrer. As coisas acontecem sem acontecer o pensamento nelas. A alma, o coração e a cabeça são coisas diferentes. Que se dão bem. E são amigas. E deixam de ser quando morrem." Miguel Esteves Cardoso, no Público, sobre a sua mulher Maria João e o cancro que a toma.

Luís Gonçalves Ferreira

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