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Do lado de lá

Desde que me comecei a apaixonar, acho que me perdi. O encontro amoroso tardio faz com que tenha evoluído com buracos e defeitos; com as adolescências fora do sítio: como uma criança doente do crescimento. O "ser" social é grande, na contagem dos homens, enquanto o "ser" passional é pequenino. E isto gera confusão e uma necessidade enorme de reajuste.

Analisar o estado em que me encontro - e especialmente o que me trouxe até aqui - não muda nada, é certo, mas ajuda a muita coisa. Durante estes mais de dois anos em hold, percebi-me melhor: cresci, mesmo que magoado, na forma de encarar o ser humano, de o entender e, acima de tudo, de o interpretar. Dei valor a perdas e menosprezei chegadas, mas sempre amando o presente, mesmo temendo o futuro.  Dissolvi os meus gostos pessoais, passei a escrever menos e a ler pouco. Perdi as rédeas ao curso que tirava, talvez por me ter encontrado e obrigado a re-interpretar gostos. As artes cresceram dentro de mim e o design ganhou um gigantismo enorme. Nunca saí do conforto que é ter quase nada. Hoje, a vida pessoal está de rastos, em cacos. As paixões não me trouxeram nada, o curso está no sítio onde o deixei, mesmo depois de ter tentado mudar de cidade, de vida, de grupos, no sentido do reencontro. Percebi que o sítio não te torna, mas tornea-te, não mudando nada, no essencial, se a tua inércia não for força para te mexer do cimo da pedra. A aparente perda de sentido - que não vejo mudar - alia-se à não menos aparente falta de força/coragem para sair desta posição. É uma certa covardia não intelectualizada, mas que os outros "outros" fazem questão de apontar. Tenho saudades. Do ser positivo, apaixonado, sonhador que era, por ainda não ter vivido quase nada. Hoje mexo-me mais, conheço mais coisas, porque puxei a navalha para cima da mesa. Entretanto, os níveis de perfeição vão desvanecendo. Percebo que cultivei imagens nos outros que, a longo prazo, iria ter que esbater: ninguém é perfeito. Desiludi muita gente, por estar perdido, especialmente por não me conseguir encontrar. As pessoas tornaram-me mais egoísta e frio, um pouco mais distante, apesar dos inúmeros casos de belas e cultas presenças que ainda me provam que as coisas valem a pena. Dou-me menos (ou tento fazê-lo) com o puro medo de sofrer. Não gosto de me ver a bater no fundo. 

Durante este tempo - em que me dediquei a 100% às pessoas - tornei-me mais pessoa. Refiz o papel da morte da minha avó na minha vida e transformei-a no maior ensinamento silencioso de sempre. Talvez o tenha feito para me engrandecer, no sofrimento; para me tornar mais como ela - mais próximo daquele especial sentido de ser pessoa. Hoje, aos 17 de Agosto, não sei o que fazer da minha vida, como não sei há uns largos meses. Hoje, aos de Agosto, não sei para onde quero ir, que curso tirar, que profissão seguir, mas sei quem sou. Dos meus valores, da minha ciência, do meu trigo e do meu vinho. Hoje, mesmo que não completamente feliz, apetece-me voar, como sempre. Mas hoje, ao contrário de há dois anos, sei que não o posso fazer sozinho, porque acompanhado é mais seguro. Falta-me só a coragem de cruzar a porta e encontrar alguém nos cruzamentos dos céus. Estou à tua espera, do lado de lá da porta.

Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Já fizeste o mais difícil: encontrares-te.
    (recordo uma miúda, pouco mais velha do que tu, que mandou o curso e as expectativas dos outros à fava, em busca de si; e deu certo)
    Muita sorte para o resto (é apenas de sorte que precisas, aquela sorte que nos faz "descobrir a pólvora" no momento mais inesperado).
    Um beijo.

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  2. Leio-te e medito. Nao me parece que te possa dizer isto ou aquilo como se fosse branco ou preto. De repente a meio do dia o sol obnubila-se e chega a chover no verão...

    Se por um lado me parece que estás na fase da desidealização, por outro parece-me que (aindsa) te estás a encontrar. Posso apenas dizer-te que, por mais estranho que pareça, estou aqui, atento aos teus passos, e so nao sei se dirias aos outros que, afinal, vale (ou n ao) a pena, apaixonarem-se!

    Um abraço grande. Como tu. Adorei ler, entre tanta outra coisa: "Refiz o papel da morte da minha avó na minha vida e transformei-a no maior ensinamento silencioso de sempre."

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