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In memoriam

Era dezembro e o tempo estava triste... Acho que ainda consigo sentir a pequena chuva a cair-me no rosto, o gorro que me protegia a cabeça... Um comboio havia-me trazido de madrugada, ao teu encontro. Vestia calças pretas, como hoje. Usava a mala preta – a mesma de hoje. Era Inverno e tinha um lenço fancy, diferente dos de todos (sempre gostei de peças de roupa estranhas). Claramente tentara agradar-te, sem saber: copiei-te as poses, do teu jeito metaleiro, feio, meio poluído. Havia-me despersonalizado ao adoptar-te nos gostos, nas modas, nos interesses. Passei a gostar do que gostavas: das bonecas japonesas, dos cânticos negros, do misticismo, das pretas almas. Naquele dia, vinha preparado para ver o espetáculo da minha vida, da pessoa que nos unira, a 13 de Março de 2010. Lembro-me da data: agrafei-a. 

Oh friend, you’ve left me speechless, so speechless. 

Recordo-me de quando nos cruzamos a segunda e última vez nas nossas vidas: estavas sentado no chão, ao lado da pessoa que te colhera o coração e nos influenciara a pseudo-relação que construímos. Não sei como aguentei ver-te tão pouco. Não sei como aguentei a tamanha humilhação das tuas preferências, dos teus gostos, especialmente deste último trono: o de te sentares ali, e não aqui, naquele dia tão especial. O dia 10 de Dezembro de 2010 não foi um dia completamente feliz. Nada na vida o é: aprendi a controlar os entusiasmos, a desconfiar-me, e a amar-me cada vez menos ao mesmo tempo que o meu amor por ti crescia. Já me questionei se foi amor – ainda hoje o faço. Sei que fiquei com buracos, falhas, e somei mais traumas aos desfile dos que já tinha. Acho que nunca mais sonhei, de verdade: naquela altura era tudo tão novo que nem sonhar era preciso, mesmo sabendo que o fazia, ao estar ali. Só o sonho pode justificar tamanha irracionalidade. Foste tu o meu primeiro palco. Foste tu a minha primeira fala. Foste tu o meu primeiro ensaio magnânimo. Mas o palco não era meu (ou só meu): tínhamos 400 quilómetros e a tua insegurança pelo meio. 

Naquele dia, estavas de preto (não aprendi a imaginar-te de outra forma). Despertaste em mim coisas novas e, por certo, trouxeste-me onde estou hoje. Foi naquele dia que me descruzei definitivamente de ti: deras-me as provas finais para sair do palco. Hoje não sei de ti, nem do que te é feito, mas espero, sinceramente, que estejas feliz. Incrivelmente, naquele dia, cruzei-me com a pessoa que me fez expulsar-te de vez. Fez-me tão feliz que nem saudades tuas tinha. Vinha para me dar tudo, mas eu não tinha nada para dar. Dei-te tudo e não sobrava muito para distribuir. Já lhe pedi desculpa por ti, na surdina muda em que os corpos se misturam com o amor. Agradeço-lhe, todos os dias, por ter entrado e nunca saído. Depois vieram tantas outras pessoas: na sua maioria projectos falhados, incrivelmente deixados ao vento, pelo meu excesso de entusiasmo em cumprir metas. Hoje, ao olhar para trás, consigo ver as falhas e apontar a maioria dos defeitos à minha falta de feitio e à sobranceria intelectual de não admitir que era pequeno e precisava de ajuda. Era tão pequeno. Sou tão pequeno. 

Naquela data, cruzaram-se, no mesmo espaço, todas as pessoas que fizeram a minha vida ganhar sentido nos tempos que se seguiram: foi como que um cenário pintado – estavam todos lá, sem se saberem uns dos outros. Viemos buscar-nos a Lisboa. Só hoje conseguimos detectar isso mesmo, por incrível que pareça. Poucos dias depois, fiz vinte e um anos. Depois fiz vinte e dois e estou quase nos vinte e três. Estava naquela gare a pensar nos dezembros que se seguiram. E nos que virão. E na importância incrível que 10 de Dezembro de 2010 tem para mim. Nunca fui de guardar recordações, nem de pensar em coisas definitivas, mas este foi o início de um mundo novo. Tão novo que nunca vai deixar de o ser -  gosto muito disto em que me tornei. Idolatro a minha liberdade, as feridas, mas especialmente as pessoas que me acompanham. E, curiosamente, hoje são 10, mas de Setembro. Do nosso Setembro. Talvez seja tempo de voltar a tomar o comboio de regresso, em definitivo. Faz sentido regressar. Já não há do que fugir.

10 de Dezembro de 2012
Rumo ao Norte
Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Raise a glass to mend all the broken hearts...

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  2. Há datas que, por as termos agrafado, deixam sempre a cicatriz da saudade e da nostalgia, remédios naturais para uma nova esperança, Luis!

    Um abraço com as palavras que te deixo!

    ResponderEliminar
  3. Time is a tricky thing, sometimes you forget what you've done an hour ago, but some other times you still remember something that passed away, and you wonder... is this memory still alive?

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