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Morreste-me?

Não houve, desde então, dia de chuva como aquele. Contavam vinte do mês primeiro de dois mil e cinco; assolava um frio de morte. O dia cheirava a choro, a saudade, a raiva, a medo; a despedida. De entre os ramos de flores, os tules, as velas, marcava-se a personificação da minha saudade. Desde aí, nunca mais deixei escapar pessoas, nunca mais me desinteressei dos outros. Reaprendi a calcular distâncias e a aceitar partidas, por não haver adeus tão definitivo como aquele. Foi o pior dos Invernos, a pior das Primaveras, o pior dos Verões. E logo chegou o Outono com a chuva; as memórias. Não há chuva como aquela. Não há dias cinzentos como aquele. Não houve dias até então. Partiste-me com a tua partida. E dei-me depois. Senti a tua falta quando queria defesa e não encontrava. Chorei-te, como ainda o faço, quando não tenho berço, nem mão que me acuda nesta intensa missão de viver. Guardei-te, reaprendendo a amar. 
Nunca me vou esquecer do cheiro moribundo do sentimento de culpa por não te ter tratado melhor. És paz, finalmente, porque começo a saber lidar com tudo isto. Da mulher que aceitou sofrer, que perdoou e voltou a perdoar, que nunca julgou, renasceu uma parte de mim de dentro de ti. Fazem hoje anos que morreste, tu deves saber. Chove diferente desde aí, porque chover nunca mais foi a mesma coisa. Nunca mais foi a mesma coisa. 
Do amor, da saudade, das lágrimas que me sugam as palavras e das lutas que travo para conseguir falar. Da falta que me fazes, da ausência que sinto, das promessas que conheces. Do tempo que vivemos, dos sorrisos que demos, do futuro que vou sonhar com base em ti. Da pessoa que sou nem nunca deixo de ser, porque tu morreste feliz com um caminho para os outros. Desfaço-me em santos, em espiritualidades, em deuses: tudo para te conseguir justificar. Estás viva e cheiras a natureza, a flores, a retratos e ao pó engrenado das memórias. Assumo que não me recordo bem das tuas mãos, nem da tua voz, e envergonho-me por já não saber do teu verdadeiro cheiro. Será isso fundamental? Morreste-me, Avó. E renasceste logo depois. Foi tudo num sentido tão teu que não quero, nem posso, nem sequer preciso, perguntar mais nada. 

Luís Gonçalves Ferreira

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