Avançar para o conteúdo principal

Os oitenta do Avô Severino

O Avô Severino sempre significou muita coisa. Lembro-me de ir para escola na sua companhia e achá-lo severo de mais por acordar a casa com água fria na cara, ao querer espantar o sono dos mais novos, num cenário de quase-tropa. Lembro-me da impaciência e da teimosia dele, ao não permitir que ninguém fique em pé, na mesa agora farta. Recordo-lhe as cicatrizes que ele partilha, repetidas vezes, como quem diz "nunca digas nunca". Tomo-lhe o casamento de anos com a avó Júlia e a imensa inundação de sentimentos que isso significa. Lembro-lhes as histórias das férias, a companhia de anos de vida, como segundos e terceiros e especiais pais que também significam. 
Dono de uma habilidade e inteligência incomuns para a sua escolaridade, ele lembra-nos precisamente que é  possível. Que é sempre possível. O Avô é, na família, um pilar de rigidez, de uma certa intolerância aos desvios em relação aos seus valores e ao percurso da sua vida. Hoje, com vinte e três, vejo que essa é a sua forma de amar: a de querer incondicionalmente que ninguém passe por onde passou, com a consciência que é possível por lá voltar passar. 
Todos sabemos das histórias de Goa, da máquina de escrever, da fábrica de batatas-fritas... "Toda a ideia tem tendência a tornar-se uma realidade", diz ele. Todos que com ele privam, recordam-se das histórias dos tios e pais miúdos, dos empregados crescidos no seu seio, influenciados pelos seus valores. Ser pai para quem de ser pai poucos modelos tem, é provavelmente das tarefas mais complexas da existência. Apesar disso, e por que cada um ama como foi amado, ele ama com o melhor de si. E para ele, como sempre, foi e continua a ser possível amar.  
Não me esqueço, aqui, das possibilidades que ele me criou, por entre os remendos do ser humano que tento construir, neste paradoxo entre o antes, o agora e o depois. E pelos fados, traumas, destinos, com trabalho, é possível. E isso é uma imensa luz. E, simultaneamente, uma pesada responsabilidade: nada na vida se faz sem perdas, obstáculos, pesos ou fardos.Tudo tem um preço. 
Aos 80 anos dele e aos 23 meus e aos tantos vossos, não me consigo desligar de nada disto. Não lhe consigo deixar de dedicar estas linhas, para que ele perceba que é importante, apesar de tantas vezes isso parecer difuso nas relações complexas que vamos desenvolvendo. É um avô coragem, determinação, força, inteligência, astúcia. É um avô-exemplo. E isso, na soma final da matemática que tudo tem, só consegue ser positivo. 
Se alguma vez lhe disse isto directamente? Não. Aprendo, também pelo exemplo dele, da minha mãe e da minha avó, que há certas coisas que não precisamos de dizer.
São oitenta, meu caro. E o relógio, feroz, já continua a correr pelo enésimo depois deste.
Parabéns.

Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

  1. Lindo! :)

    Por momentos pensei que este era um texto a falar do meu avô!

    Gosto muito do que escreves, parabéns!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado pela motivação que as tuas palavras me dão. :) Beijinho!

      Eliminar
  2. Um texto espectacular :) E parabéns ao avô*

    ResponderEliminar
  3. Não posso concordar mais contigo luisinho, verdade e mais tantas vezes nos achamos inteligentes que ao ouvir as suas palavras por vezes vemos que ainda nos resta uma longa caminhada para o sermos pois ele quase sempre tem razão e a sabedoria de pensar mais á frente, pergunto-me como é possivel...é , toda a sua experiencia de vida faz com que nos ensine que todos os dias temos algo a aprender...parabens ao Sr Severino

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Vá comenta! Sem medo. Sem receio. Com pré-conceitos, sal e pimenta!

Mensagens populares deste blogue

Repondo a verdade

Depois de inúmeras tentativas (que agradeço), passo a devolver o dente ao leão, a identificar aquilo que é verdade ou mentira: 1. Adoro manteiga de amendoim Verdade. Quem convive comigo (ou quem me ouve falar) sabe desta paixão. Em pequeno ia para a casa da minha tia e comia pacotes dela. Hoje, depois do sofrimento para emagrecer, contenho-me no consumo. Mas a paixão existe, ai se existe... 2. Compro todas as edições da “Super Interessante” Verdade. Compro-as todas (pelo menos de há dois anos para cá) sem falhar um número. Fascina-me a forma despreocupada, límpida e inteligente que pautam os artigos da revista. 3. Já apareci no programa da Fátima Lopes vestido de anjinho Verdade. A minha mãe foi ao programa SIC 10 Horas demonstrar ao país o seu ofício (vestir anjinhos) e eu, filho devoto e cumpridor, pousei como Jesus Cristo (com cabeleira e tudo). Vergonha. Foi o que me restou do acontecimento. :) 4. Leio a Bíblia constantemente e o meu Evangelho favorito é o de Mateus ...

Aceitação do Prémio Lusitania História – História de Portugal Academia Portuguesa da História

Senhora Presidente da Academia Portuguesa da História, Professora Doutora Manuela Mendonça,  Senhores Membros do Conselho Académico, Senhoras e Senhores Académicos,  Senhor Dr. António Carlos Carvalho, representante da Lusitania Seguros, S.A., Ilustres Doadores,  Senhoras e Senhores,  Vestidos de Caridade, Vestidos de Fé, Vestidos de Serviço, Vestidos de Pátria.  São vários os nomes que podem ter os vestidos que, ao longo da História, foram oferecidos de ricos para os pobres, dos homens e mulheres para os deuses, dos senhores para os seus criados e criadas, de um país ou reino para o seu povo, do ser que não se é para o que se quer ser. Em todos eles há pedido, necessidade, dádiva, hierarquia e crepúsculo. A minha avó Júlia, costureira de ofício e filha de um armador de caixões, fez durante décadas roupas de “anjinho” que alugava nas festas e romarias do Minho. Miguel Torga, num de “Os Contos da Montanha”, referiu que nem o Coelho nem outro qualquer da aldeia o ...

Carta IV

Avó, como estás? Noutro dia, como sempre, fui ver-te ao local onde está a tua fotografia e umas frases iguais a tantas outras. Eram vermelhas, as tuas flores. Estava tudo bonito e arrumado. A tua nova casa, como sempre, estava tão fria. O dia está sempre frio quando te vou visitar lá, já reparaste? Espero que no céu seja tudo mais ameno e menos chuvoso. Tu merecias viver mais tempo, porque eras calma, serena e um porto seguro. Queria voltar a ser menino e ter-te novamente e dar-te tudo o que merecias de mim. Era muito pequeno para perceber como merecias mais carinho... Tenho saudades tuas, avó. Do teu colo. Do teu carinho. Da tua protecção e de quando ias comigo passear, à terça-feira. Fomos dois companheiros muito fortes, não fomos? Deixaste-me de responder... Não te oiço. Mas sinto-te. Sinto muito a tua falta, onde quer que estejas.  Tenho muitas saudades tuas. Muitas mesmo.  Até logo, nos sonhos, avó. É só lá que me consigo encontrar contigo e abraçar-te docemente. Luís...