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Ofícios

Dez blocos de dez cores diferentes. Um banco. Um tempo infinito, mãos de artista, uma religião inspirada, e um ideário político. Observação, análise, tempo. Quietude.
No autismo dos blocos de cores, entre todas as construções que se podem fazer, passavam horas, por tempo infinito, em que as peças rodavam, os dedos mexiam, a cabeça pensava, e destruía e reconstruía. O coração sedentário, angustiado, buscando direcções. Respostas. Caminhos. Os outros, mesmo que mudos, davam respostas, faziam perguntas, eram morte e vida. E o cérebro criava diálogos, filosofias, contava favas e ervilhas, e construía castelos. Os dedos, os mesmos da construção, logo se empunhavam e cerravam um golpe: destruir. Era o comando da criação. Nunca um Homem se sentiu tão Deus num cenário teatral tão simples.

Balizas, limites, uma mesa. Quatro linhas rectangulares artificialmente postas e desenhadas. Um mestre exterior ao mundo, a desenhar tudo. A saber sobre tudo. A crer sobre Deus ao querer ser Deus. Uma filosofia analítica sobre respostas, sobre caminhos, sobre perguntas, sobre angústias, sobre Desejos. Uma exaustão podre de cansaço, de infinito desespero por encontrar respostas, justificações, e ver em todas as novas pirâmides um altar para destruir Pandora. O conhecimento, o absoluto, a sede de saber tudo. De conhecer tudo. De decompor tudo. E os cubos, agora quadrados, outrora triângulos, jamais círculos, criam sentidos. Dão finalidades. Exalam projectos. Criam-se artifícios. E o sentir, no meio da análise, é o mais importante. É o que realmente importa. É o impacto das cores, dos sentimentos, das reportagens televisivas sobre o nosso auto-conhecimento. Que forma o fará descolar do banco, fechar o autismo numa mala, relaxar os olhos, e dormir um sono? Que círculo, que triângulo, que forma? Que filosofia, que nome, que conceito? Que amor?

Cansado, a dormir, ainda fabricava. Agora a sonhar. A criar por campos onde a metafísica entra e Deus continua a orientar a mente para tentar ser como Ele. O médio, o normal, o holocausto da existência, a escravatura do ser-se simplesmente. O esclavagismo do consumo, do desejo, da destruição dos ideais milenares que nos orientam.

Um texto meio confuso. Uma mesa meio difusa. Um plano trocado, e um quadro no alçapão. Uma cabeça meio desarrumada. E um mundo, como só ele sabe ser e é, porque os sentidos, esse cúmulo de verdades nossas, acabam por destruir tudo. E fabricar tudo. O meu mundo, o teu mundo. A minha perspectiva. A tua perspectiva. As cores, os cubos, os desenhos, as linhas. Duas, três, quatro mesas encostadas. E uma manufatura de autismos, de "nossos mundos". E a humanidade, nesta forma mecânica hodierna de sentir, está onde? Em nós? O que é real, afinal? 

Tenho muito sono e estou cansado de pensar sobre o Mundo. Conclusões que não surgem, ou que mesmo clarificadas ficam cada vez mais densas. É como uma cortina de nevoeiro numa manhã de Primavera: uma Esperança cheia de medo de se mexer do sítio.

Luís Gonçalves Ferreira

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