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Um cancro maior

As pessoas criam obsessões pelas coisas que perdem e por aquilo que não conseguem obter. Parece que esta é a premissa correcta da qual partimos para, na aparência, tentar justificar o bando de doenças mentais que atacam as nossas visões, na sociedade post-moderna em que vivemos. Uma vida estável, uma casa própria, um carro nosso, e a capitalização total do sucesso através da acumulação de coisas: como se as metas da nossa vida e dos nossos sonhos estivessem, agora, a morar fora de nós; como se a vitalidade do ideal da felicidade acerca da própria vida andasse noutras estradas, exterior ao nosso total e dependente controlo.
Perdemos talvez o maior sentido da existência humana: aquele que depende exclusivamente da nossa atitude perante o mundo e os outros. Somos mais covardes, mais egoístas e a margem de esforço para conquistar algo diminuiu grandemente em relação a gerações passadas; parece que é só a sorte conquista uma carreira ou uma ideia genial... Das histórias sobre o Facebook, o Instagram ou uma carreira de sucesso, é-nos informada a oportunidade, a conjuntura, e nunca é merecidamente empolado o trabalho dos intervenientes.
Acostumamo-nos a viver por fora, à margem dos sentimentos, dos actos positivos ou do altruísmo puro. E o mais incrível é que achamos, mais das vezes, que o conseguimos fazer; há sempre um bem material que nos é vendido e supera a carência, nos projecta para a realização interpessoal. Acreditamos que amamos inteiramente, que nos dedicamos às nossas causas próprias com amplitude e magnificência; que somos bons, na verdade, quiçá melhores que os outros. E porque hoje só o visível tem valor, criamos uma insana necessidade de tornar palpável tudo aquilo em que acreditamos, devotamos ou damos valor. A nossa obsessão é que aquele mundo exterior, criado e vendido por nós aos outros, seja uma mentira mais ou menos coerente e que a saibamos defender, quando confrontados com as suas incoerências. Humildemente vamos tentando reconhecer o papel dos outros, mas achamo-nos absolutos.
As redes sociais, o afastamento em relação às normatividades clássicas, a destruição das verdades absolutas, e o absoluto questionamento de tudo... Como que num caos exterior se permitisse um redescobrimento interior. Como se as sementes fossem posteriores à colheita; como se só a morte desse sentido à vida, e talvez nem assim seja. Ela poderá, tão-só, ser um limite último, uma consciência eterna da finitude da nossa existência, pelo menos neste plano. Depois falamos em químicas, continuamos a apelar a Deus na tristeza e na morte, lemos clássicos sobre dogmas, estudamos canotilhos de arte, procuramos sobre proporções e regras de ballet. Acreditamos que só o piano e violino fazem música verdadeira, e que a matemática é a ciência da orientação e que tudo no mundo existe na lógica dela. Devotamo-nos às proporções, aos sentimentos, ao amor e à orquestra. E o revivalismo orienta-nos, nestes dias. Mas, não era destruição que confessamos como solução, no leito da nossa confusão interior? Terapias alternativas, religiões e seitas que nos prometem neo-prosperidade, neo-deuses, neo-felicidade, e mais ajuda externa a um problema que só de interno tem.
Já não sabemos existir sozinhos de tão sozinhos que só sabemos estar. Estamos todos fortemente doentes e o plano giratório em baixo dos nossos pés, que grita sem parar, é talvez a maior prova disso. Devêssemos nós parar de acreditar em palavras e fechar, de vez, os olhos à razão, ou será feliz o caminho até aqui caminhado por de mãos dadas ter estado com a ignorância? 

Fecho os olhos e adormeço.

Luís Gonçalves Ferreira

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