Avançar para o conteúdo principal

O nosso futuro é uma metáfora

“A mamã e o papá não passavam de duas crianças quando se casaram. Ele tinha dezoito anos, ela dezasseis e eu três.” Agora tenho vinte e nove anos e a minha namorada vinte e oito. Estamos juntos há oito anos e não pensamos em casar, mas já vivemos juntinhos que nem pombinhas branquinhas em ninho de amorzinho. Vimos muitos filmes, em meninos, e achamo-nos unicórnios especiais em cima de grama verde. Brotamos um arco-íris das asas e os outros não (ou foi nisto o que a sociedade nos fez acreditar). 

Ela chama-se Ana, é filha de pais médicos, agora divorciados. Em pequena queria ser arquiteta, e depois pintora, agora é uma designer medianamente reconhecida. Tem um salário de mil e poucos euros, em que o Estado lhe paga metade do mesmo. Na verdade, o trabalho dela vale pouco mais de quinhentos euros e um subsídio de alimentação em cartão de compras.

Sou o Márcio, os meus pais estão juntos, e fui criado pela minha avó. Não namorei até ao meu segundo ano de faculdade e fui praxado. Bebi muitos copinhos de alegria, e compaixão, e sempre senti um falso paternalismo à minha volta. Primeiro das minhas tias, depois dos meus amigos mais velhos, a seguir da escola, depois a faculdade quis tomar conta de mim. E agora, com esta idade, é o Estado a querer educar-me. Vai querer fazê-lo, também, em relação aos meus filhos. Corta-me o salário, decide o meu consumo mensal, e o banco controla-me o resto da vida, porque fiz um crédito à habitação.

Eu e a Ana até somos felizes, mesmo sem filhos. Desejámo-los muito, apesar da Ana ter medo que o puto lhe deforme as ancas. A sua cultura artística cheia de medos de deformações fá-la temer isso. O papel da mulher, na sociedade actual, deve assustá-la também. Ser esposa, filha, mãe, educadora, profissional… Ela não é o Hércules e eu sempre amei as suas imperfeições.

Não temos emprego certo, e os recibos verdes são a miséria pós-moderna das gerações (à)rasca. Vivemos na cultura das incertezas, desde da durabilidade cada vez mais duvidosa do televisor ou até das relações humanas. Há a cultura do desperdício do que não é novo. No fundo, investigamos a reutilização e desleixamos da utilização total das coisas usadas.

A mamã e o papá eram duas crianças quando se casaram, e não tinham tempo para sonhar. Sem grandes expectativas, guardavam apenas uma promessa de vida de trabalho numa fidelidade prometida ao projecto conjunto que eram os seus sentimentos. A vida foi sempre uma surpresa e eles ainda sabiam agradecer. Não destruíam relações com desdém e tinham noções de amor próprio suficientemente boas para não obsecarem por aquilo que não podem ter. A mamã e o papá crescerem e tornaram-se a mãe e o pai e serão a vovó e o vovô. A mamã e o papá irão ao meu casamento como foram ao meu final de curso. A mamã e o papá trabalharam muito e se calhar nem reforma vão ter. Não queria ser mamã e papá e ter um filho na minha situação, ou viver num país no da minha situação, ou sequer ver netos na minha situação. A mamã e o papá são do tempo em que o amor era um compromisso e uma obra de arte que se queria bonita, de tão perfeita. Agora, já não há mamãs e papás assim. Ou há, e são raros. Tão poucos que se torna um sonho construir o mundo assim.

O meu país envergonha-me. Somos a geração mais qualificada da história de Portugal, a mais alienada da política, a mais doente mental de todas, e aquela que menos promessas pode fazer. O exemplo da mamã e do papá e o meu, como seu filho, terão em si uma lição: a de se não prometer grande coisa a ninguém.

Por favor, não digam barbaridades e não prometam coisas que não podem cumprir. Que parem as mentiras dos políticos, dos vizinhos, das indústrias, do marketing, da Coca-Cola, da Versace ou do Mc Donalds. Parem de nos prometer felicidade capitalizada. Parem de nos controlar a mente. Por favor, parem de poluir o ambiente, e de nos fazer ver que a reciclagem pode salvar o mundo. Parem de matar animais para alimentar uma sociedade estupidamente egoísta. Por favor, parem de nos matar sob o pretexto que nos estão a salvar. 

Os vírus estão a mutar-se, como as nossas mentes. A medicina parece cada vez ter menos solução para as doenças do nosso cérebro. O normal é uma ficção e deviam condenar a Disney à pena de morte.

Luís Gonçalves Ferreira
Texto escrito para uma das jornadas do 20.º Campeonato Nacional de Escrita Criativa

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Pensar mais do que sentir

Tenho saudades de ser pequeno, livre e inocente. Sinto falta da irresponsabilidade de ser cândido e não saber nada sobre nada. Estou nostálgico em relação ao Luís que já existiu, foi, mas que não voltará a ver-se como se viu. Este corpo e alma que agora me compõem são reflexos profundos da minha história. O jeito de sorrir, abraçar e beijar reflectem os sorrisos, abraços e beijos que fui recebendo. Sinto falta do Luís que só sabia dizer mamã e Deus da má'jude . Sinto a ausência das pessoas que partiram e que naquele tempo estavam presentes. Sinto saudade de só gostar da mãe e de mais ninguém. Sinto saudades de sentir mais do que pensar. É um anseio que bate, mas nada resolve, porque apenas cansa a alma. A ausência corrói a alma e o espírito. É nestas alturas que penso que a Saudade e o fado são as maiores dores de alma que consigo ter. Provavelmente, sou mesmo um epicurista. Luís Gonçalves Ferreira

Sem parágrafos

Por momentos  - loucos, é certo - esqueço-me de mim e sou capaz de amar. Amar sem parar, com direito às anulações, sofrimentos e despersonalizações que os amores parecem ter. Por momentos - curtos e fugazes - eu esqueço-me de mim e sou, inteiramente, completamente, antagonicamente teu. Entrego-me, como quem não espera um amor livre. Dou-me como quem sente que as minhas vísceras são as tuas entranhas. Abraço-te como quem encosta os corações, que outrora estavam frios, gelados e nus. Aproveita, meu amor, eu sou teu. Aproveita que estou louco e leva-me contigo, para sempre. Rapta-me o corpo, a mente e o descanso eterno deste insano coração. Corres, contudo, o sério risco de não me levares por inteiro. Prefiro trair o coração que a mente, amar a imagem do que viver intensamente a vida de outrem. Amor, querido e visceral amor, leva-me e mostra-me que existes. Não sei quantas horas tenho para cumprir esta promessa que fiz a mim mesmo. A memória irá voltar e corres risco de já não me acha...