- “Olá, boa noite. Sejam bem-vindos a mais uma sessão de Entrevistas Improváveis. Esta noite trago-vos uma convidada especial: chama-se Andreia Pedro, tem 35 anos, afirma-se como a encarnação do Medo com o livro «Ser Medo».”
- “Andreia, diz ser a encarnação do Medo. O que a faz afirmar-se como tal?”
- “Na verdade, eu não sou a encarnação de nada. Isso far-me-ia filha de uma Virgem concepcionada por um Espírito qualquer. E não, eu tenho uma mãe e um pai e eles fornicaram porcamente para me concepcionar. É lógico, também me disseram que vinha de uma cegonha, e que era filha de um amor profundo. Acho que o fizeram por medo de eu não perceber que tinha sido criada num acto tão humano e sujo como é o sexo. Descobri, na escola, a verdade e fiquei bem, apaziguando quando entendi que o sexo deles era uma profunda sinfonia de um amor desejado.”
- “Bem, fez uma observação irónica. Qual é a sua posição em relação à religião?”
- “Eu fui criada católica e permito-me a ironizar essa estória da Bíblia, porque não me questionaram se queria receber valores cristãos ou acreditar no bem e no mal. Com a idade que tenho, e cheia destas crenças, eu sei como falar sobre isto. E a antologia do Medo, na sociedade moderna, começa aqui: disseram-nos que Deus nos castigaria pelo mal, que sujos fomos concepcionados e teríamos de receber a Graça de Deus, numa vida de bem, para limpar a mancha do diabo. E este medo – das circunstância do “crime” da cópula – condicionou a nossa vivência pura, desviou-nos do Estado Natureza, mascarando-nos para sempre. Não digo que isto seja errado, pois precisamos de condicionantes para sermos normais. A normalidade é necessária à sã convivência dos homens, mas eu não escolhi ser condicionada pelo Medo durante a minha vida. Nós evitamos amar por medo de sofrer. Evitamos ser o que nos apetece, porque sentimos que constantemente estamos a ser validados, avaliados, criando máscaras de protecção. E depois há loucos enfiados em alas psiquiátricas.”
- “Então, Andreia...”
- “Não culpo os deuses, nem o capitalismo, nem a ausência de comunismo, nem a religião, nem os meus pais. Mas nós vivemos na cultura do medo da afirmação. Por aprendizagem crescemos e o medo é aprendido. Os medos de ratos, de poços, de alturas, e fobias mais acompanham o crescimento do homem. O pavor são véus que nos criam, como o certo ou o errado. O medo conta-nos traumas e cicatrizes da vivência. E ao vivermos o medo estamos a conhecer-nos melhor, mas a questão é, e queria que vocês guardassem isto, nenhum de nós conhece os seus medos, porque tem medo do próprio inseguro que o medo é. Talvez seja evolucionismo, e os choques de adrenalina sejam naturais, mas ninguém é livre na sua mente. Eu só não queria continuar a ver pessoas a possuirem medo da entrega, do desejo em demasia, do excesso e contento. Eu não queria ver um mundo tão pequeno, achando-se grande. Tenho medo e sou medo. E todos, por medo, perdemos a capacidade de lutar por aquilo em que acreditamos e pelo que queremos.”
(pausa à câmara)
O medo é o pior dos desertos.
Luís Gonçalves Ferreira
Texto escrito para o 20.º Campeonato Nacional de Escrita Criativa
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