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A geração do meio.

Até o amor vem em conta gotas. A dada altura, no meio do cansaço, pedimos sentimentos médios. "Um amor médio, por favor". Sentir de mais atrapalha a visão, turva o coração e dificulta a estratégia de planear uma vida. Ainda mais agora, que ninguém tem emprego certo. Vem um vento e as nossas pernas tremem - as casas voltaram a ser feitas de palha, como nos três porquinhos. Somos a geração dos 50%: um meio amor, um meio carro, uma meia casa, um meio funcionário, um meio patrão, uma meia renda, um meio preço da carne. Ao pequeno-almoço: meia de leite e meia torrada sem manteiga, porque não podemos engordar. Temos que ter um meio corpo, um meio físico, um meio projecto de perfeição tatuada na carne. O nosso mundo perdeu graça. Somos uma seca. O planisfério do conhecimento, da filosofia, dos conceito decorados das cartilhas... É como um jogo da macaca para adultos: ganha quem sair menos vezes da zona de conforto. Deixamos de viver a intensidade das coisas, e o sabor perfeito que é o da entrega a pés juntos.

Nós não somos a geração à rasca, nem a mais qualificada de sempre. Isso é lisonjeador. Nós não percebemos nada de filosofia, nem de religião nem de política. Nem nos mexemos por nada. Somos uma geração obesa, contentada, medíocre, que come o lixo das gerações antigas e lhes paga os créditos. Ser uma meia geração tem destas coisas: quando aceitamos um meio amor, e nos envergonhamos sentir, estamos a destapar o quão desértica pode ser a estratégia. Ou o quão diminuídos somos. Forçamos meias expetativas e combatemos as doenças mentais. O que vamos pagar no futuro, para além das dívidas do PIB, é esta perda de humanidade. Talvez aí façam mais sentido as máquinas e o frio do carbono-14. Será tudo mais semelhante a nós. Devem ter acabado as relações, como num filme de ficção que vi em garoto. Talvez tudo faça sentido.

Sempre preferi os lugares do meio, no cinema. Sentia-me mais protegido.  Dividir o o lugar do cotovelo parecia-me demasiado evasivo.

Luís Gonçalves Ferreira 

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