Avançar para o conteúdo principal

Sábado à noite

É sábado à noite, como muitos outros. A chave roda a fechadura e a porta abre. Um armário à frente, com livros e garrafas por trás. Uma janela ao fundo. Ao lado direito, uma tela. Verdes com grenás tímidos, e um amarelo tosco fundido no fundo. Um televisor mudo e um móvel raso. Há um tapete no chão. E um silêncio toma as rédeas do campo, e do escuro singular que faz nesta mor esquina de uma cidade qualquer. Uma solidão talhada a canivete, devagar para não doer. Um atalho para a minha própria mente: uma explosão entre a surdina do televisor, os livros por terminar e um longe da família que escolhi. Há mil cores na tela, e um espírito penumbrante que me dá cabo da espinha e adormece os pés: é a idade e o desrespeito pelo corpo que gritam tão alto quanto as cordas aguentam. Nem o piano é tão branco e nem a música me comove da mesma forma. E há rotina inteira para recalcular. E um vazio de perguntas por responder. O silêncio sempre foi uma cena fodida. Por meses esqueci-me disso. Acomodei-me ao reajuste, sempre com trejeitos de companheiro-campeão que se quer melhorar. Que me perdoem os deuses.

Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Aceitação do Prémio Lusitania História – História de Portugal Academia Portuguesa da História

Senhora Presidente da Academia Portuguesa da História, Professora Doutora Manuela Mendonça,  Senhores Membros do Conselho Académico, Senhoras e Senhores Académicos,  Senhor Dr. António Carlos Carvalho, representante da Lusitania Seguros, S.A., Ilustres Doadores,  Senhoras e Senhores,  Vestidos de Caridade, Vestidos de Fé, Vestidos de Serviço, Vestidos de Pátria.  São vários os nomes que podem ter os vestidos que, ao longo da História, foram oferecidos de ricos para os pobres, dos homens e mulheres para os deuses, dos senhores para os seus criados e criadas, de um país ou reino para o seu povo, do ser que não se é para o que se quer ser. Em todos eles há pedido, necessidade, dádiva, hierarquia e crepúsculo. A minha avó Júlia, costureira de ofício e filha de um armador de caixões, fez durante décadas roupas de “anjinho” que alugava nas festas e romarias do Minho. Miguel Torga, num de “Os Contos da Montanha”, referiu que nem o Coelho nem outro qualquer da aldeia o ...

Quietude

Tenho saudades de quando, no calor do tempo, caminhávamos de mãos dadas. Tenho saudades de sentir que as nossas almas eram uma só e que, mesmo por tornado, o castelo ficaria intacto. Lembro-me de como sorria a olhar para ti. Era genuína a forma de te contemplar. Hoje a ferida está aberta por de mais. Tudo me deixa triste, porque a margem de erro diminuiu de tanto ser usada (e abusada). Hoje são como farpas que entram na pele e ferem ainda mais. Não sei até que ponto isto continua viável. Como se a amizade se pudesse avaliar assim... Está tudo fora do sítio e, eu, quieto, continuo à tua espera. Luís Gonçalves Ferreira

Carta IV

Avó, como estás? Noutro dia, como sempre, fui ver-te ao local onde está a tua fotografia e umas frases iguais a tantas outras. Eram vermelhas, as tuas flores. Estava tudo bonito e arrumado. A tua nova casa, como sempre, estava tão fria. O dia está sempre frio quando te vou visitar lá, já reparaste? Espero que no céu seja tudo mais ameno e menos chuvoso. Tu merecias viver mais tempo, porque eras calma, serena e um porto seguro. Queria voltar a ser menino e ter-te novamente e dar-te tudo o que merecias de mim. Era muito pequeno para perceber como merecias mais carinho... Tenho saudades tuas, avó. Do teu colo. Do teu carinho. Da tua protecção e de quando ias comigo passear, à terça-feira. Fomos dois companheiros muito fortes, não fomos? Deixaste-me de responder... Não te oiço. Mas sinto-te. Sinto muito a tua falta, onde quer que estejas.  Tenho muitas saudades tuas. Muitas mesmo.  Até logo, nos sonhos, avó. É só lá que me consigo encontrar contigo e abraçar-te docemente. Luís...