Avançar para o conteúdo principal

Crónica de um deus revoltado

O meu nome é Deus. Já fui preto, branco, amarelo e afins. Fui-o à vossa imagem e à semelhança das coisas que vos dizem respeito. Quiseram que fosse protetor do dinheiro, da guerra, do amor, sexo e da fortuna. Fui Rei dos Reis e Luz da Luz. Deus verdadeiro, Deus verdadeiro. Justifiquei poder e fracasso. Fui quase sempre humano: ora cabeça de gato, ora fronte de elefante. O meu nome é Deus e sou como vós, por que vós assim o quiseste.
O meu nome é Deus e dei-vos santos em troca de altares. Ofereci-vos proteção em horas de aflição e fui justificação máxima em horas de Glória. Vós sois, afinal, inúteis: é a mim que quereis chegar. Deram-me tronos e logo os tiraram, querendo que do vosso poder carnal de alguma coisa de mim tivesse. Dei-vos um filho, até. Ou vários. Casei com prostitutas, deusas e pari semi-deuses e deuses completos: vocês alegravam-se quando algo de mim podiam ter. Dei-vos bastardos como autênticos, e dos reis que vos ofereci glorificam-lhes a genética. Construí impérios nas vossas mãos, trocaram-me oferendas em portas de templos, dentro deles como fora. Ergueram-me janelas e fecharam-nas ao tentarem encontrar-me 
Reinterpretaram-me diversas vezes. Fui a fonte da vossa angústia e desconfiança, até desculpa pelos vossos crimes desumanos. Como ousaram usar-me como álibi? A culpa é por certo minha que vos criei: imperfeitos, capazes, cerebrais, e livres. Tão livres que vos capacitei para me escolherem a forma, a substância e a ruptura da vossa consciência. 
Sou um homem, como vós. Fechado num cárcere. Há dias que me revolto e outros em que vos uso: como peões. Rio-me sozinho, aqui, fechado. De vós, das vossas imagens e figuras ridículas de seres pseudo-auto-determinados: são todos iguais. Uns fantoches que só os meus Gregos faziam melhor. Aprendi com eles a rir de vós. 
Sou um homem. Preso. Escravo das vontades do vosso destino. Sou um homem e nunca amei. Fui amado, ou odiado na leve fronteira, por todos vós. Sou uma jaula de vontades humanas acostumada ao fracasso. 
Ser deus é difícil e vocês não percebem isso, seus idolatradores!

Luís Gonçalves Ferreira

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Repondo a verdade

Depois de inúmeras tentativas (que agradeço), passo a devolver o dente ao leão, a identificar aquilo que é verdade ou mentira: 1. Adoro manteiga de amendoim Verdade. Quem convive comigo (ou quem me ouve falar) sabe desta paixão. Em pequeno ia para a casa da minha tia e comia pacotes dela. Hoje, depois do sofrimento para emagrecer, contenho-me no consumo. Mas a paixão existe, ai se existe... 2. Compro todas as edições da “Super Interessante” Verdade. Compro-as todas (pelo menos de há dois anos para cá) sem falhar um número. Fascina-me a forma despreocupada, límpida e inteligente que pautam os artigos da revista. 3. Já apareci no programa da Fátima Lopes vestido de anjinho Verdade. A minha mãe foi ao programa SIC 10 Horas demonstrar ao país o seu ofício (vestir anjinhos) e eu, filho devoto e cumpridor, pousei como Jesus Cristo (com cabeleira e tudo). Vergonha. Foi o que me restou do acontecimento. :) 4. Leio a Bíblia constantemente e o meu Evangelho favorito é o de Mateus ...

Aceitação do Prémio Lusitania História – História de Portugal Academia Portuguesa da História

Senhora Presidente da Academia Portuguesa da História, Professora Doutora Manuela Mendonça,  Senhores Membros do Conselho Académico, Senhoras e Senhores Académicos,  Senhor Dr. António Carlos Carvalho, representante da Lusitania Seguros, S.A., Ilustres Doadores,  Senhoras e Senhores,  Vestidos de Caridade, Vestidos de Fé, Vestidos de Serviço, Vestidos de Pátria.  São vários os nomes que podem ter os vestidos que, ao longo da História, foram oferecidos de ricos para os pobres, dos homens e mulheres para os deuses, dos senhores para os seus criados e criadas, de um país ou reino para o seu povo, do ser que não se é para o que se quer ser. Em todos eles há pedido, necessidade, dádiva, hierarquia e crepúsculo. A minha avó Júlia, costureira de ofício e filha de um armador de caixões, fez durante décadas roupas de “anjinho” que alugava nas festas e romarias do Minho. Miguel Torga, num de “Os Contos da Montanha”, referiu que nem o Coelho nem outro qualquer da aldeia o ...

Carta IV

Avó, como estás? Noutro dia, como sempre, fui ver-te ao local onde está a tua fotografia e umas frases iguais a tantas outras. Eram vermelhas, as tuas flores. Estava tudo bonito e arrumado. A tua nova casa, como sempre, estava tão fria. O dia está sempre frio quando te vou visitar lá, já reparaste? Espero que no céu seja tudo mais ameno e menos chuvoso. Tu merecias viver mais tempo, porque eras calma, serena e um porto seguro. Queria voltar a ser menino e ter-te novamente e dar-te tudo o que merecias de mim. Era muito pequeno para perceber como merecias mais carinho... Tenho saudades tuas, avó. Do teu colo. Do teu carinho. Da tua protecção e de quando ias comigo passear, à terça-feira. Fomos dois companheiros muito fortes, não fomos? Deixaste-me de responder... Não te oiço. Mas sinto-te. Sinto muito a tua falta, onde quer que estejas.  Tenho muitas saudades tuas. Muitas mesmo.  Até logo, nos sonhos, avó. É só lá que me consigo encontrar contigo e abraçar-te docemente. Luís...