Foi numa quinta-feira, no centro da cidade, junto à inscrição romana à deusa Ísis, que assistíamos a uma aula de Epigrafia. No mesmo dia e pelas mesmas ruas, centenas de estudantes trajados (e por trajar) exibiam os seus gritos e marchas, carregando litrosas e misteriosas misturas. Entre veículos municipais de limpeza, barulhos de praxe e silêncios ocasionais, prosseguia a aula, cautelosa e curiosa, como sempre.
Eis que, pelo silêncio das traseiras da Sé, chega uma senhora ao grupo, acomodando-se ao meu lado. Olhos claros, de meia idade, com poucos dentes e aspecto mal-tratado. Cruzei-lhe a pinta e reconheci-a doutros burgos: pedia moedas, na rua, numa sabedoria capitalista de quem, com educação, abordava todos os que, pela sua indiferença, a marginalizam
Eram curiosos os seus silenciosos olhares e carismáticos os sorrisos que oferecia. Colocou questões, levantou e repôs os óculos escuros, interrompeu a aula, vestindo a pele de aluna recém-chegada a um tema de que "não percebia nada".
Despediu-se e agradeceu: pela boa-vontade da professora (uma mestre, mostrou-se) e pelo tempo que lhe faltava, entre esta e aquela moeda, este e aquele estranho, esta e aquela rua, que certamente viria a cruzar.
Enquanto centenas de doutores e caloiros, homens e mulheres medianos, velhos e novos entediados, batiam os seus "cascos" pelas ruas da mui nobre Bracara Augusta, uns olhos pedintes souberam que, em tempos remotos, uma sacerdotisa chamada Lucretia Fida ofereceu à deusa Isis algo suficientemente memorável para figurar naquela cuidada inscrição.
A curiosa anónima queixou-se, porém, que não conseguia ver as folhas de hera que pontuavam e decoravam aquela pedra. Mal ela sabia que, dentre alunos e estranhos, tinha sido para si, mesmo em latim e com interlocutora, que aquela pedra mais havia falado.
* Título roubado ao manual de Epigrafia do Professor José D'Encarnação.
Luís Gonçalves Ferreira
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