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Jesus no jardim connosco

Depois de celebrar a Páscoa com Tadeu e os outros apóstolos, surgiu-me um súbito desconforto para falar com o meu pai. Desde que criança que seguia os meus instintos e procurava-o onde conseguia e apetecia. Naquele dia, para além de sentir a morte a rodear-me os poros, fui atraído para o Jardim das Oliveiras: local alto de Jerusalém de onde conseguia ver o meu povo. Pelo caminho, voltando pelo redor com Tiago, Pedro e João, lembrei a forma magistral com tinha sido recebido, montado num pequeno animal, por entre gritos e cânticos de glória. Nunca acreditei nos defeitos dos seres humanos, mas, a caminho do horto da paz, lembrei-me do quão ignóbil é amotinação dos outros; ser rei e ser carrasco, em segundos.
Procurei uma pedra e ajoelhei-me, perante ela. Sentia o meu fim próximo e procurei o meu pai. Queria entender qual a razão da minha escolha, se existia revés, por onde me deveria encaminhar, como poderia encarar a negação do Pedro - ali, ao largo, já a dormitar - ou a traição de Judas - que da mesa pascal partiu ao Templo, para me trair. Procurava-te, pai, e não te encontrava; como quem busca respostas para uma doença ou uma morte. Então, já sem esperanças, e jorrando lágrimas e suores de sangue, apareceu-me um anjo com uma luz dos braços. Era como eu, de pele escurecida do calor, mas com cabelos claros sombreados a ouro. Perguntei-lhe o nome, mas deu-me a mais perturbadora das respostas: o silêncio. Como o silêncio que oferecia à minha mãe, quando me procurou entre os doutores.
A minha angústia e temor pararam quando vi aquele anjo de meditação e resignação. Percebi, sem demoras, que o meu fim apenas tinha começado; que a glória seria eterna, para além da penitência e dos escarros que viria a suportar, num peso de madeiro, pelos mesmos que, pouco tempo antes, me tinham vangloriado. Senti, do lado direito, a voz do diabo, agora mais muda, após a Tua chegada. Foi-se embora e, por entre um sono e um estado de loucura, vi tudo o que estava para chegar: a cruz, a corda, os dados, a túnica, a coroa de espinhos, a cana verde e a carta de Arimateia, pedindo o meu corpo. Ouvi os berros da minha mãe, aos meus pés chagados, entre os cabelos da Madalena e o olhar sereno e atento de João, o meu discípulo amado.
Voltei ao local onde tinha deixado os meus apóstolos, deles chamei à razão, predizendo a fraqueza da carne, e ao largo ouvia a voz de Judas Iscariotes e os passos de cabedal dos soldados dos judeus. Senti um frio de morte e abandono, mas a força do cálice penetrou-me a espinha e me preparou o martírio. Tive receio, naquele momento, pela minha mãe; a minha querida mãe. Só dela me recordava, assim como de toda a Humanidade, lembrando-me dos seus braços estendidos em minha direcção, ainda criança. Eu sou virtude, mas sou também carne: como vós. 

Luís Gonçalves Ferreira

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