A caminhada triunfal que Jesus fez para abraçar a cruz, do Palácio de Pilatos para o Gólgota (que significa caveira), é projetada do berço do Cristianismo para o nosso mundo, especialmente durante a Quaresma. Diversas localidades portuguesas relembram a caminhada de dor do seu salvador, todos os anos, entre veludos e damascos roxos, numa Igreja que ostenta, mas sobretudo comove.
Trabalhar em procissões dá-nos uma perspetiva diferente sobre a vivência da religiosidade do povo, sendo notórias as clivagens e pontes entre a Igreja culta, institucional e dogmática, e as massas populares que a abraçam, modificam e disciplinam. A religião - e Deus, por inerência - parece ser uma simbiose entre todas as forças que se conjugam no quotidiano das orações e dos encontros; das mães que perdem os filhos; das doenças que se curam por diálise interior; das despedidas cicatrizadas com tempo.
As procissões que, nas suas ruas, repetem a última caminhada de Jesus Cristo para o Calvário, relembrando a dor de Maria ao encontrá-lo ferido e moribundo, são um catálogo quase perfeito das experiências que fizeram da Igreja Católica e Apostólica Romana uma realidade possível, dois milénios após a sua fundação: esse encontro rotineiro e emotivo entre os seres humanos (e as suas pequenas questões) com a imensidão do institucionalizado (cheio de grandes coisas e verdades universais).
O quadro da Nossa Senhora das Dores, São João Evangelista e Santa Maria Madalena, que teatralmente se abraçam ao longo das procissões minhotas, para depois se terem cruzado com Cristo, é, na voz do povo, chamado de "tribuna". Provavelmente, noutros tempos, aqueles personagens moravam, ao longo do ano, na tribuna da igreja, nos pés da cruz. Entre a rotina estática no retábulo-mor do templo e o personagens de carne e osso que desfilam cobertos de cetim e veludo, as figuras bíblicas e anjos provavelmente significam esse profundo mar de sensações que une o ser humano, crente e comovido, ao divino, numa esperança da alma em direcção à Casa do Pai; uma espécie de almejado encontro entre o espírito e o corpo, na rota da ressurreição.
Não é mais do que procurar ser visível pelo mundo do invisível; ser Deus sendo humano; ser, por isso, Jesus Cristo. Metamorfose forte e pesada, como nós, feitos Povo de Deus a caminho da casa do Pai.
Luís Gonçalves Ferreira
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