Sou natural de uma freguesia chamada Cervães, que faz parte do concelho de Vila Verde. Na verdade, a casa dos meus avós está entre duas freguesias e, até bem pouco tempo, tinha uma irmã natural da freguesia vizinha à minha. Mas isso não importa muito para a questão que vos queria contar.
Hoje de tarde estive com historiadores e historiadoras, engenheiros e engenheiras, arquivistas e outros convidados, a ouvir sobre memória, arquivos, informação, informática, bases de dados e binários. O debate ia alto e interessante e falávamos sobre pessoas. Não das físicas e concretas (como se houvesse pessoas metafísicas e não concretas), mas daquelas que produzem rastos: deixam-nos na administração pública, nos tribunais, nos serviços do Estado ou nas empresas às quais compram coisas e dali se fazem documentos; são rastos de alguma forma involuntários, produzidos com um objetivo funcional e cujo armazenamento custa dinheiro. A questão central a todo o debate é que, nesta sociedade digital em vivemos, a preservação de informação imaterial é onerosa e coloca enormes desafios no seu armazenamento e acesso. A sua gestão faz-se, por isso, prevendo a sua destruição natural; rasto, aliás, objeto de estudo dos historiadores que, na sua labuta, trabalham a falta e, criativamente, narram trajetórias, compõem quadros de contexto e provocam outras manobras de percepção sobre o passado mais ou menos presente.
Neste sentido, sempre existiram (e existem) grupos mais aptos do que outros a produzir memória; detêm os recursos preferenciais, trabalham-nos durante as suas gerações e constroem narrativas que montam para o futuro. A arquitetura, a pintura e os livros são disso exemplos; também o são os arquivos públicos, porque assumem a missão da "respublicana" sobre de proteger, gerir e disponibilizar a documentação de todos a todos. A nobreza é, historicamente, um produto acabado do que vos escrevo e, para isso, basta visitar um palácio real, um solar de família do Entre Douro e Minho ou, até, as salas de aparato que as famílias burguesas montam com as suas salvas; enquanto a maioria apenas detém conhecimento histórico de uma terceira (?) geração anterior à sua, uma qualquer família nobre sabe-o quase naturalmente pelos corredores fartos que congelam rostos com os quais comunicam desde crianças.
As pessoas simples - a arraia miúda que a Nova História quis estudar - teve, no século XX, a sua vida puxada ao de cima, num percurso duradouro e permanente, que sente as pressões democráticas contra uma história descritiva feita dos e para os "grandes". Essa larga camada de homens e mulheres emersos das gestas literárias chegam à tona por um conjunto não menos enorme de fontes, não obstante à necessária criatividade do cientista social, que, quanto mais contemporâneo está ao seu objeto de estudo maior é o absurdo de fontes com que lida. Sobra um ser humano plural, diverso, que está na cadeira em que senta, no edifício que constrói, nas coisas que come e veste, nos crimes e delitos que comete, mas também nos silêncios que produz através das pausadas evidências escritas que os outros fazem de si.
Depois de ouvir toda aquela informação codificada dos cientistas gostei muito de voltar a casa dos meus pais, jantar a comida feita pela minha mãe e entregar-lhe um livro antigo sobre moldes de costura. Foi como viajar da memória forte para a memória fraca, entre instantes; gosto mais das pessoas que estão nem aí para os cientistas, os recursos, as produções do arquivo da Universidade, do que a tristeza erudita que às vezes vejo e também sinto. Deve ser por isso que me apaixono todos os dias pela historiografia diversa, policêntrica, confusa e complexa que leio e da qual me apercebo: as pessoas são também assim e guardam segredos imensos, onde a verdade, a objetividade e o rigor científico talvez não cheguem.
Gosto de voltar à gente: à minha terra e à minha mesa e ao passaporte do meu bisavô que, pela documentação guardada no Arquivo Distrital de Braga, dele soube uma pequena deficiência entre os dedos polegar e indicador. Não quero com isto escrever uma imensa glorificação da terra, do povo e das minhas raízes. Quis mais pensar de forma escrita sobre a diversidade que existe no mundo e cujos sítios como Braga, oscilantes entre o urbano e o rural em dez quilómetros, me dão a sorte de poder pensar. O mesmo senti, há uns anos, quando fui de Vila Verde a Valdreu e viajei uma imensidão de tempo para ver uns sapatos brancos cheios de lama de uma catequista, que carregava palha na cabeça, e cujas mãos calosas receberam umas túnicas de comunhão absurdamente incólumes e níveas. Há coisas que levo para a minha vida pelos sítios onde fui nascendo; isso é memória e talvez seja ela a síntese deste texto.
Luís Gonçalves Ferreira
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