Hoje a Vitorinha disse-me que pede ao Senhor, todos os dias, que a leve para junto dos seus pais. Também me disse que não tira as medidas aos anjinhos na sala de baixo da sua casa, porque lhe lembra o pai morto no caixão. Falou muito da mãe, dos irmãos e da companhia que escolheu como vida. A Vitorinha pediu a morte à minha frente, enquanto andamos todos a milhares de quilómetros por hora, especializados em pedir aos outros e ser egoístas. A solidão será muito próxima disto, num entra e vai das refeições, Deus ou da presença infinita da morte que não chega. A Vitorinha vai à missa todos os dias e repete as mesmas histórias de todas as vezes que está comigo; hoje tinha uma história nova para contar, porque cegou da vista e lembrou-se, aos 83 anos, de, em pequena, ter qualquer limitação suficiente para chamá-la para mais perto da lição. A Vitorinha, que mora junto à Sé de Braga, sintetiza muitas coisas de que não gosto na civilização minha contemporânea. Uma delas, é a existência de uma cidade moderna, jovem e egocêntrica que, noutros tempos, foi necessariamente algo mais pequeno e doméstico, cujo destino abandonaria mais lentamente as pessoas ao abandono consentido. Como se crescer nos membros fizesse chegar menos sangue às suas extremidades; disfunção como fatura pela desmesura.
O tempo tem segredos infindáveis e a falta de apoio, de suporte, de amparo e a exposição à pobreza que a cidade significa far-me-ão querer regressar para junto de um limoeiro. Lá, numa aldeia, certamente encontrarei outro registo do tempo, necessariamente mais acompanhado mesmo que provavelmente menos cómodo. Fosse tudo isto sobre ter e ser e alguém já teria dado alguma coisa à Vitorinha para fazer da sua velhice um sítio de maior dignidade.
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